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sexta-feira, 17 de agosto de 2018
A gente se acostuma - Marina Colasanti por Antonio Abujamra
"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."
MARINA COLASANTI
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sábado, 29 de abril de 2017
Fernando Pessoa explica a origem dos heterônimos - Trecho da carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
Pesquisa no Blog Alguma Poesia - Outras Palavras - Poesia Net
Alberto Caieiro - Ricardo reis - Álvaro de Campos
Desenho de Almada Negreiros, pintor e escritor modernista português, amigo de Fernando Pessoa. Os desenhos se basearam nas descrições feitas por Pessoa.
[A ORIGEM DOS HETERÔNIMOS]
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar —, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar —, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever
• Outras Palavras
Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
In Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa
Edição de António Quadros
Lello & Irmão, Porto, 1986
Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
In Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa
Edição de António Quadros
Lello & Irmão, Porto, 1986
http://www.algumapoesia.com.br
quarta-feira, 26 de abril de 2017
Aspecto financeiro do morrer, decisões sobre prolongamento e despedidas vem à tona no fim - Gláucia Chaves
Algumas pessoas preferem se planejar para não deixar pendências para trás
Do ponto de vista filosófico, falar sobre a morte pode dar um novo significado à vida. “Imagine se ninguém morresse, como seria a nossa existência? Adiaríamos as coisas por 100, 200 anos”, pondera Ana Sandra Fernandes, psicóloga clínica da Faculdade Internacional da Paraíba (FPB) e conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Ela explica que a morte é complicada por ser desconhecida. Para a especialista, a maior dificuldade, no entanto, não é tratar da morte, mas encarar a vida. “O medo de morrer ou de falar em morte atormenta mais as pessoas que não estão vivendo plenamente. Então, elas pensam que a vida pode acabar. Pensar e refletir traz um aspecto essencial para a sociedade e para as relações. A morte nos humaniza.”
Falar da morte e, principalmente, se preparar para esse momento é importante até para que familiares e amigos não sejam pegos de surpresa. Por isso, cada vez mais as pessoas estão colocando esse assunto em pauta em casa, discutindo o que elas querem para quando a hora chegar. Nada de morbidez, tristeza ou lamentações, mas o cuidado e o carinho com ela própria e com quem fica.
Em 15 de dezembro de 2010, uma quarta-feira, às 15h, Jundacy Noroná Garcia, de 56 anos, compareceu ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Diante da promotora de Justiça, confirmou a pretensão de doar o seu corpo após a morte, para fins de pesquisa e ensino médico, nos termos do artigo 14 do Código Civil e do disposto pela Lei 8.501/92. Essa declaração consta do documento assinado por ela, que confirma uma decisão antiga, tomada nos tempos de estudante de direito. Mais de três décadas após ter cogitado a ideia, Jundacy finalmente comunicou a vontade à sua filha, Priscila, à sua irmã, Juany, e à sua mãe. No dia em que oficializou o pedido, ainda não havia comunicado ao marido, mas pretendia fazê-lo.
Os documentos assinados por Jundacy autorizam o MPDFT a fazer o registro do óbito em cartório, à época em que ocorrer, e a tomar as providências necessárias. Não haverá velório, caixão ou qualquer rito que indique a passagem dela. No documento, a Promotoria de Justiça do órgão registrou “reconhecimento pelo altruísmo da declarante, disposta a colaborar com a evolução das ciências médicas e com a formação de novos profissionais de saúde”. Quando o corpo de Jundacy não tiver mais vida, será encaminhado a uma das faculdades de medicina do Distrito Federal.
TABU
Preparar-se para a morte – ou mesmo conversar sobre ela – ainda é um desconfortável tabu. Pensar sobre preferências médicas para momentos em que a fala ou qualquer outro tipo de expressão não é mais possível é também algo raro e, geralmente, associado apenas aos que estão com os dias contados. Ocorre que a vida é imprevisível. Deixar claro para parentes, cônjuges ou pessoas de confiança questões como “quero ser enterrado(a) ou cremado(a)” ou “desejo (ou não) que a minha vida seja mantida por aparelhos quando não há mais nada a ser feito” são importantes. Planejar o fim da vida, para os especialistas e personagens ouvidos pelo Bem Viver, não precisa ser sinônimo de morbidez. Ao contrário, é sinal de que a morte pode ser encarada pelo que realmente é: uma das fases da própria vida.
DEPOIMENTO
Testamento vital
O meu trabalho nos últimos 30 anos tem sido orientar como “Manter ou melhorar a qualidade de vida da pessoa com Alzheimer ou doença similar, e da sua Família” e entendo que, enquanto há vida, é preciso manter a sua qualidade. Um dos meus maiores sonhos é ver cada vez mais pessoas idosas se aproximando do fim da vida com suas próprias decisões tomadas e registradas em Testamento Vital, a família e amigos avisados sobre como querem passar a sua última etapa da vida, caso não puderem mais se comunicar e opinar. A opção por cuidados paliativos poderia evitar sofrimento nesses casos, especialmente na demência em fase avançada. É comum haver discordâncias e conflitos entre familiares e profissionais sobre questões como alimentação via sonda, deslocamento para CTI e intervenções fúteis. Somente familiares e amigos que se amam, conhecem o que significa qualidade de vida um para o outro e aquilo que sempre trouxe prazer e alegria, satisfação, prioridades, como também os medos, temores e traumas. Ao cuidar do meu esposo, Paul, em casa até a sua morte, em 2009, considerei todos esses fatores. As suas músicas favoritas, os aromas da casa, o cachorro por perto, a localização da cama, a vista da janela, foram exatamente como ele sempre gostou durante a vida e, assim, criamos um “ultimo casulo” do qual ele um dia saiu e voou.
Juddy Robbe - Trabalha com grupo de apoio para familiares de pacientes com Alzhmeimer
PARTE DA PRÓPRIA VIDA
Uma pesquisa da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, abordou a questão da falta de comunicação entre idosos e parentes quando o assunto é planejamento para o fim da vida. O estudo, publicado em março no Journal of the American Geriatrics Society, entrevistou 350 adultos com 55 anos ou mais. Além deles, os pesquisadores conversaram com as pessoas escolhidas pelos participantes como seus “tomadores de decisões”, ou substitutos, por assim dizer. Para avaliar o conhecimento dos substitutos sobre as vontades dos idosos, Terri Fried e os demais geriatras do time de pesquisadores perguntaram se os pacientes escolheriam ser tratados mesmo que o tratamento os deixasse doentes ou gravemente prejudicados física e cognitivamente.
Os resultados apontam que mais de 40% das duplas admitiram não ter conversado sobre desejos de tratamentos, testamento ou seguro de vida. Só 20% dos substitutos souberam prever as vontades dos pacientes para tratamentos de manutenção da vida. “O planejamento precisa incluir uma discussão facilitada entre o paciente e o substituto para se certificar de que eles estão ouvindo uns aos outros e falando sobre coisas que são importantes para o paciente”, ensina Fried. Facilitadores clínicos ou a própria internet podem ser ferramentas valiosas para garantir que os planos para a manutenção da vida e para o pós-morte estejam afinados entre pacientes e substitutos.
No caso de Jundacy Garcia, de 56 anos, a decisão de doar o próprio corpo para faculdades de medicina já está sacramentada em forma de documento (foto: Arquivo pessoal )
No caso de Jundacy Garcia, de 56 anos, a decisão de doar o próprio corpo para faculdades de medicina já foi mais do que comunicada: está sacramentada em forma de documento. Jundacy já era doadora sistemática de sangue e viu na doação do corpo uma forma nova de se sentir útil. A família inteira tem uma cópia do documento, que pode ser revogado por Jundacy a qualquer momento caso ela mude de ideia.
De fala suave, mas decidida, ela garante que sua decisão já está tomada. Criada em família católica, a mãe de Jundacy demorou a entender a motivação da filha. Sugeriu que ela conversasse com um padre para se certificar de que não há pecado na escolha. “Tenho fé em Deus e me declarei católica ao assinar o documento, mas não quis complicar as coisas. Não tenho esse apego. Uma coisa é religião, outra coisa é o meu corpo”, justifica Jundacy.
Ela conversa sobre a morte com naturalidade e bom humor. Um exemplo: em 2012, Jundacy se descobriu com câncer de mama. A reconstrução da mama foi feita a partir de um retalho abdominal, em que os médicos retiram parte do abdome inferior, com músculos retoabdominais, para refazer o seio arrancado. No abdômen, a área dos músculos retirados é reforçada com uma tela de material especial. “Olha só quanta coisa vão encontrar no meu corpo: tem a mama reconstruída, a tela… Hoje, ele tem muito mais detalhes do que quando decidi doá-lo”, brinca.
DECISÃO
Nem todo mundo encara o assunto de forma tão leve, contudo. O marido, quando soube da decisão, não expressou opinião. Disse apenas que Jundacy poderia fazer o que quisesse. “Já ouvi que sou doida, que isso não é normal. Já ouvi de pessoas espíritas que não é bom. Mas não misturo as coisas. Se você ficar ouvindo todo mundo, tudo vai ser pecado.” Religião, falta de conhecimento, medo. Para ela, todas essas variáveis impedem uma conversa franca sobre um momento natural e que acontecerá com todos nós. “Quis decidir logo porque, se acontecesse alguma coisa, não iria mais dar tempo”, completa.
E Jundacy quase não teve tempo mesmo: durante o primeiro ciclo da quimioterapia, teve dois choques anafiláticos. Quando sentiu sua glote fechar, pensou que sua hora havia chegado. “Pedi perdão pelas minhas falhas, mas pensei que estava pronta. Sem pânico. Não tenho medo da morte. A morte é um fenômeno tão natural quanto nascer.”
Registro de vontades
A morte nunca foi um mistério para Raimunda Ramalho da Silveira, de 92. A aposentada passou grande parte da vida lidando com os percalços da existência: enfermeira, presenciou inúmeros nascimentos e mortes. No começo da carreira, trabalhou na clínica médica de um hospital do Rio de Janeiro. Lá, viu que muitos pacientes eram internados para morrer. “Aquilo me deixava muito preocupada, tanto remédio para prolongar a vida. O certo é sedar o paciente para que a morte venha sem sofrimento”, opina. “Eu controlava o soro, a pressão deles, ficava naquela agonia para manter o paciente vivo. Ficava pensando: mas se ele vai morrer mesmo, para que tanta coisa?”.

Raimunda Ramalho da Silveira, de 92 anos (foto: Arquivo pessoal )
Quando um familiar de Raimunda sofreu um derrame, ela foi fazer uma visita. O paciente estava internado no Centro de Terapia Intensiva (CTI) de um hospital particular da capital federal. “Olhei no painel que diz quanto oxigênio a pessoa está recebendo e a pessoa estava com 60% de vida artificial – ela não sairia viva dali”, relembra. “A diária custava R$ 1 mil. Eu disse ao meu primo que aquilo era um verdadeiro saneamento econômico para o hospital.” Dois meses depois, o parente de Raimunda faleceu.
O episódio a marcou profundamente. Raimunda achou aquele tratamento inadequado, com medicações excessivas e um investimento monstruoso para uma situação em que a vida não conseguiria vencer. “Pensei: não vou deixar que isso aconteça comigo.” Os anos se passaram, Raimunda se aposentou e, aconselhada pelo geriatra, resolveu deixar registrada sua vontade de não permanecer viva caso venha a depender de aparelhos para tal. “Assinei os papéis consciente de que estava fazendo a coisa certa”, reforça. “Quando for a minha hora, não quero que me deem oxigênio ou que façam traqueostomia, quero que me sedem. De que adianta passar quase dois meses no hospital, com 60% de vida artificial, para morrer do mesmo jeito?”, questiona.
FASE TERMINAL
Desde 2012, é possível registrar em um prontuário a quais procedimentos o paciente quer ser submetido no fim da vida. A Resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que qualquer pessoa (maior de idade e em plena consciência) pode definir com o médico quais os limites terapêuticos na fase terminal. Daniel Azevedo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), acredita que o tabu em torno da morte tem um quê de superstição: evita-se falar sobre ela para não “atraí-la”. “Quando falamos sobre ela, não estamos sendo mórbidos ou atraindo energia negativa”, pondera. “Estamos dizendo exatamente o que queremos e o que não queremos para nós mesmos. Estamos nos mantendo como protagonistas da nossa própria história.”
Há um estudo da Universidade de Stanford em que os pesquisadores perguntaram para um grupo de médicos que procedimentos eles gostariam ou não de receber ao fim da vida, conta Azevedo. Quando perguntados se aceitariam ser entubados, reanimados, receber alimentação artificial em sondas e outros procedimentos dessa natureza, a maioria dos profissionais afirmou que não gostaria de passar por essas situações. “Para alguns desses itens, a média de negação chegou a 98%”, completa o médico. “O fato é que existe um contraponto entre o que os médicos não gostariam que fosse feito com eles e o que fazem com os pacientes. É possível que os próprios médicos não estejam confortáveis para conversar sobre o término da vida.”
As reações acerca da morte variam: dentro do consultório, o geriatra diz que há quem se ofenda, mas há quem se sinta aliviado por tocar no assunto. “Muitos idosos têm vontade de falar sobre o assunto, mas são inibidos pela família ou por seus cuidadores”, completa. “A mensagem é que nunca é cedo demais para dizer aos que nos cercam como gostaríamos de ser tratados. Nossa situação pode mudar da noite para o dia e podemos perder nossa capacidade de comunicação.” A dificuldade de aceitar perder quem se ama é, para Daniel Azevedo, outro entrave na conversa sobre a morte. “É uma armadilha, um egoísmo. Nessas situações, as decisões não são tomadas em prol da pessoa que está lá, mas de acordo com a vontade de algum familiar. Quem está morrendo é que deve ser o ator principal, os outros são coadjuvantes.”
Resolução 1.995/2012
Conhecido como diretiva antecipada de vontade, o documento é uma espécie de testamento vital. Lá, o paciente pode registrar os procedimentos pertinentes e quais não devem ser usados em casos de doenças crônicas ou terminalidade da vida. Ventilação mecânica, tratamentos medicamentosos ou cirúrgicos que causem dor intensa ou reanimação em casos de parada cardiorrespiratória são alguns dos critérios que podem ser incluídos no documento. O registro é formalizado em prontuário. A diretiva antecipada de vontade é facultativa. Só é permitida a maiores de idade ou menores emancipados judicialmente. Crianças e adolescentes não podem fazer o documento (nem os pais podem fazê-lo em nome dos filhos).
Os médicos são treinados para garantir que a vida continue. Contudo, a morte, por vezes, é inevitável. Helena Moura, psiquiatra e psicoterapeuta, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr), comenta que a classe médica também sofre quando não há mais o que ser feito por um paciente. “O doloroso é ter a sensação de que o médico poderia ter feito algo e não fez”, completa. “Temos a impressão de que temos que lutar contra a morte a qualquer custo. Dependendo da situação, essa luta não vale a pena.” Muitos médicos, segundo a psiquiatra, sentem dificuldade em lidar com a morte. “Amparar alguém, então, é quase inviável.”
Lidar com a morte como parte do dia a dia profissional é um desafio emocional. Patrícia Werlang Schorn, oncologista e coordenadora do Centro de Oncologia do Hospital Santa Lúcia, trabalha há 15 anos com pacientes em diversas fases da vida. Ela frisa que não há, na formação dos médicos, nenhuma disciplina para preparar psicologicamente os profissionais nesse sentido. “Vamos aprendendo com o que a vida vai ensinando”, comenta. A sensibilidade para conversar sobre o fim da vida acaba sendo uma habilidade pessoal do médico, avalia a especialista.
Informar quando um paciente não tem mais perspectiva de viver, por exemplo, é algo extremamente delicado. Cabe ao médico decidir como e quando fazer. “Alguns pacientes estão muito preparados para receber notícias duras sobre o fim da vida, e outros não”, completa. “Explico com sutileza, não despejo de forma pesada, e informo claramente como vai ser a evolução da doença. O objetivo é lidar com a boa morte, o que significa que, em algumas situações, atingimos o fim da vida. O esforço contrário é em vão.”
Entender os próprios limites como profissional é outro grande desafio para os médicos. “Quando escolhi a oncologia, um colega me disse que eu perderia todas as batalhas. Acho que a oncologia, apesar do contato iminente com a morte, me faz pensar todos os dias sobre os valores da vida. A vida tem várias formas de terminar, não necessariamente com a morte do corpo. Pode acabar quando a vida perde a graça, por exemplo”, reflete Patrícia.
O hematologista Eduardo Flávio Ribeiro, membro titular da Sociedade Brasileira de Hematologia e professor de hematologia da Universidade de Brasília (UnB), também convive com a morte diariamente, sem nenhum tipo de acompanhamento psicológico. “Acho que, de certa maneira, todos deixamos de lado um pouco o pensamento da nossa finitude no nosso dia a dia”, opina. “Ficamos envolvidos com questões sociais, de trabalho, financeiras ou de ordem familiar – a morte não é uma questão presente. Temos a impressão de que ela não vai chegar, de que sempre vai dar tempo.”
COMO ESPELHO
Eduardo Ribeiro já presenciou muitas mortes. Para ele, lidar com isso é especialmente duro quando se trata de um jovem. “Além da questão de que aquela pessoa tinha a vida inteira pela frente, tem a questão do espelho. É alguém que poderia ser você, que tem a sua idade, filhos, casamento. A gente esquece que nós, seres humanos, temos um valor incalculável para as pessoas que nos amam.” Quando ainda era residente, Eduardo acompanhou um paciente diagnosticado com câncer de pulmão metastático, já fora de possibilidade de cuidados terapêuticos. Os médicos, sem poder fazer qualquer outra coisa, criaram um espaço para que a família se despedisse do paciente com privacidade. “Quando ele deu o último suspiro, a esposa dele me disse que quem eu estava vendo morrer não era mais um paciente, mas o amor da vida dela, com quem ela tinha escolhido viver. Nunca vou me esquecer disso.”
Mesmo com mais de duas décadas de experiência, o médico não se considera preparado para a morte. Mas a encara de maneira a ajudar ao máximo quem está passando por ela, seja com conhecimento técnico ou mesmo conselhos financeiros. “Falamos sobre expectativa de vida, viagens que ele ainda queira fazer, sonhos”, enumera. “Muitas vezes, a gente espera ouvir a pessoa dizer que fumava, bebia. O que ocorre é que muitos dizem que passaram a vida inteira só trabalhando. O que aprendi é que a vida nem sempre é justa, mas temos que viver o presente. Fazer o que gostamos, ter um planejamento, mas ficar no presente, no médio prazo. Saber que muitas pessoas só se deram conta do quanto é importante a vida no último momento é muito doloroso. Precisamos ser menos mecânicos e mais humanos.”
Planejamento funerário

Especialista em educação financeira, Reinaldo Domingos pontua que o planejamento é importantíssimo para evitar que o momento seja ainda mais delicado (foto: Marco Antonio Sá/Divulgação)
Preparar-se para o fim da vida inclui muitos tipos de planejamento. Além dos procedimentos médicos, é preciso levar em conta os aspectos financeiros. Jazigo, cremação, velório, seguro de vida e muitos outros itens entram na lista de gastos funerários. Reinaldo Domingos, doutor em educação financeira e presidente da Associação Brasileira de Educadores Financeiros (Abefin), pontua que decisões desta natureza, infelizmente, costumam ter altos custos. Planejamento, portanto, é importantíssimo para evitar que o momento seja ainda mais delicado.
Pesquisar, fazer escolhas e orçar serviços e produtos necessários, de acordo com o especialista, são passos indispensáveis. Ter uma poupança é uma das recomendações de Domingos. Explicar a finalidade do dinheiro para parentes e/ou cuidadores do paciente é outra orientação valiosa. “Há também gastos com caixão, traslado, manutenção do jazigo e exumação, o que pode pesar no bolso dos familiares”, completa. “Com certeza, a poupança será uma preocupação a menos para eles.” (Veja quadro.)
Aspectos a serem considerados
» Jazigo
Caso deseje ser enterrado/a, é importante procurar saber se familiares e amigos dispõem de jazigos que podem ser usados por sua família. Em caso negativo, é válido pesquisar e orçar os custos, lembrando que serviços funerários podem ser contratados e pagos com antecedência. Consulte pacotes – eles podem ser mais vantajosos.
» Cremação
Em muitos casos, essa opção é mais barata do que o enterro, considerando especialmente as despesas com manutenção. É válido procurar empresas confiáveis e que pratiquem um bom preço, deixando a indicação e os contatos com os familiares. Contratar e pagar com antecedência é uma garantia de que tudo ocorrerá de forma segura e tranquila.
» Velório
A maioria dos locais que prestam o serviço de enterro e cremação oferece espaço para o velório. Caso não haja essa possibilidade, é importante buscar um espaço que atenda às necessidades da família, orçando os valores com antecedência. É válido incluir no orçamento as despesas com flores, cujo preço pode variar bastante.
»Testamento
Para quem tem patrimônio, investimentos ou acredita que a partilha dos bens pode gerar dor de cabeça, é válido buscar o respaldo de um advogado e elaborar o documento com antecedência, considerando tanto seus desejos quanto as necessidades dos que ficam.
» Seguro de vida
É muito importante ter uma reserva financeira ou seguro de vida que garanta proteção aos familiares, para que tenham suporte para manter seu padrão de vida caso uma fatalidade ocorra. Na maioria dos casos, a indenização abrange a invalidez em decorrência de doença ou acidente.
» Doação de órgãos
Caso tenha esse desejo, com a consciência de que poderá beneficiar outras pessoas, manifeste-o aos familiares e amigos mais próximos para que isso não seja esquecido. Afinal, a disposição será cumprida pela família.
Fonte: Reinaldo Domingos, doutor em educação financeira e presidente da Associação Brasileira de Educadores Financeiros (Abefin)
Texto publicado no Portal Uai - O grande portal dos mineiros - www.uai.com.br
Do ponto de vista filosófico, falar sobre a morte pode dar um novo significado à vida. “Imagine se ninguém morresse, como seria a nossa existência? Adiaríamos as coisas por 100, 200 anos”, pondera Ana Sandra Fernandes, psicóloga clínica da Faculdade Internacional da Paraíba (FPB) e conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Ela explica que a morte é complicada por ser desconhecida. Para a especialista, a maior dificuldade, no entanto, não é tratar da morte, mas encarar a vida. “O medo de morrer ou de falar em morte atormenta mais as pessoas que não estão vivendo plenamente. Então, elas pensam que a vida pode acabar. Pensar e refletir traz um aspecto essencial para a sociedade e para as relações. A morte nos humaniza.”
Falar da morte e, principalmente, se preparar para esse momento é importante até para que familiares e amigos não sejam pegos de surpresa. Por isso, cada vez mais as pessoas estão colocando esse assunto em pauta em casa, discutindo o que elas querem para quando a hora chegar. Nada de morbidez, tristeza ou lamentações, mas o cuidado e o carinho com ela própria e com quem fica.
Em 15 de dezembro de 2010, uma quarta-feira, às 15h, Jundacy Noroná Garcia, de 56 anos, compareceu ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Diante da promotora de Justiça, confirmou a pretensão de doar o seu corpo após a morte, para fins de pesquisa e ensino médico, nos termos do artigo 14 do Código Civil e do disposto pela Lei 8.501/92. Essa declaração consta do documento assinado por ela, que confirma uma decisão antiga, tomada nos tempos de estudante de direito. Mais de três décadas após ter cogitado a ideia, Jundacy finalmente comunicou a vontade à sua filha, Priscila, à sua irmã, Juany, e à sua mãe. No dia em que oficializou o pedido, ainda não havia comunicado ao marido, mas pretendia fazê-lo.
Os documentos assinados por Jundacy autorizam o MPDFT a fazer o registro do óbito em cartório, à época em que ocorrer, e a tomar as providências necessárias. Não haverá velório, caixão ou qualquer rito que indique a passagem dela. No documento, a Promotoria de Justiça do órgão registrou “reconhecimento pelo altruísmo da declarante, disposta a colaborar com a evolução das ciências médicas e com a formação de novos profissionais de saúde”. Quando o corpo de Jundacy não tiver mais vida, será encaminhado a uma das faculdades de medicina do Distrito Federal.
TABU
Preparar-se para a morte – ou mesmo conversar sobre ela – ainda é um desconfortável tabu. Pensar sobre preferências médicas para momentos em que a fala ou qualquer outro tipo de expressão não é mais possível é também algo raro e, geralmente, associado apenas aos que estão com os dias contados. Ocorre que a vida é imprevisível. Deixar claro para parentes, cônjuges ou pessoas de confiança questões como “quero ser enterrado(a) ou cremado(a)” ou “desejo (ou não) que a minha vida seja mantida por aparelhos quando não há mais nada a ser feito” são importantes. Planejar o fim da vida, para os especialistas e personagens ouvidos pelo Bem Viver, não precisa ser sinônimo de morbidez. Ao contrário, é sinal de que a morte pode ser encarada pelo que realmente é: uma das fases da própria vida.
DEPOIMENTO
Testamento vital
O meu trabalho nos últimos 30 anos tem sido orientar como “Manter ou melhorar a qualidade de vida da pessoa com Alzheimer ou doença similar, e da sua Família” e entendo que, enquanto há vida, é preciso manter a sua qualidade. Um dos meus maiores sonhos é ver cada vez mais pessoas idosas se aproximando do fim da vida com suas próprias decisões tomadas e registradas em Testamento Vital, a família e amigos avisados sobre como querem passar a sua última etapa da vida, caso não puderem mais se comunicar e opinar. A opção por cuidados paliativos poderia evitar sofrimento nesses casos, especialmente na demência em fase avançada. É comum haver discordâncias e conflitos entre familiares e profissionais sobre questões como alimentação via sonda, deslocamento para CTI e intervenções fúteis. Somente familiares e amigos que se amam, conhecem o que significa qualidade de vida um para o outro e aquilo que sempre trouxe prazer e alegria, satisfação, prioridades, como também os medos, temores e traumas. Ao cuidar do meu esposo, Paul, em casa até a sua morte, em 2009, considerei todos esses fatores. As suas músicas favoritas, os aromas da casa, o cachorro por perto, a localização da cama, a vista da janela, foram exatamente como ele sempre gostou durante a vida e, assim, criamos um “ultimo casulo” do qual ele um dia saiu e voou.
Juddy Robbe - Trabalha com grupo de apoio para familiares de pacientes com Alzhmeimer
PARTE DA PRÓPRIA VIDA
Uma pesquisa da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, abordou a questão da falta de comunicação entre idosos e parentes quando o assunto é planejamento para o fim da vida. O estudo, publicado em março no Journal of the American Geriatrics Society, entrevistou 350 adultos com 55 anos ou mais. Além deles, os pesquisadores conversaram com as pessoas escolhidas pelos participantes como seus “tomadores de decisões”, ou substitutos, por assim dizer. Para avaliar o conhecimento dos substitutos sobre as vontades dos idosos, Terri Fried e os demais geriatras do time de pesquisadores perguntaram se os pacientes escolheriam ser tratados mesmo que o tratamento os deixasse doentes ou gravemente prejudicados física e cognitivamente.
Os resultados apontam que mais de 40% das duplas admitiram não ter conversado sobre desejos de tratamentos, testamento ou seguro de vida. Só 20% dos substitutos souberam prever as vontades dos pacientes para tratamentos de manutenção da vida. “O planejamento precisa incluir uma discussão facilitada entre o paciente e o substituto para se certificar de que eles estão ouvindo uns aos outros e falando sobre coisas que são importantes para o paciente”, ensina Fried. Facilitadores clínicos ou a própria internet podem ser ferramentas valiosas para garantir que os planos para a manutenção da vida e para o pós-morte estejam afinados entre pacientes e substitutos.
No caso de Jundacy Garcia, de 56 anos, a decisão de doar o próprio corpo para faculdades de medicina já está sacramentada em forma de documento (foto: Arquivo pessoal )
No caso de Jundacy Garcia, de 56 anos, a decisão de doar o próprio corpo para faculdades de medicina já foi mais do que comunicada: está sacramentada em forma de documento. Jundacy já era doadora sistemática de sangue e viu na doação do corpo uma forma nova de se sentir útil. A família inteira tem uma cópia do documento, que pode ser revogado por Jundacy a qualquer momento caso ela mude de ideia.
De fala suave, mas decidida, ela garante que sua decisão já está tomada. Criada em família católica, a mãe de Jundacy demorou a entender a motivação da filha. Sugeriu que ela conversasse com um padre para se certificar de que não há pecado na escolha. “Tenho fé em Deus e me declarei católica ao assinar o documento, mas não quis complicar as coisas. Não tenho esse apego. Uma coisa é religião, outra coisa é o meu corpo”, justifica Jundacy.
Ela conversa sobre a morte com naturalidade e bom humor. Um exemplo: em 2012, Jundacy se descobriu com câncer de mama. A reconstrução da mama foi feita a partir de um retalho abdominal, em que os médicos retiram parte do abdome inferior, com músculos retoabdominais, para refazer o seio arrancado. No abdômen, a área dos músculos retirados é reforçada com uma tela de material especial. “Olha só quanta coisa vão encontrar no meu corpo: tem a mama reconstruída, a tela… Hoje, ele tem muito mais detalhes do que quando decidi doá-lo”, brinca.
DECISÃO
Nem todo mundo encara o assunto de forma tão leve, contudo. O marido, quando soube da decisão, não expressou opinião. Disse apenas que Jundacy poderia fazer o que quisesse. “Já ouvi que sou doida, que isso não é normal. Já ouvi de pessoas espíritas que não é bom. Mas não misturo as coisas. Se você ficar ouvindo todo mundo, tudo vai ser pecado.” Religião, falta de conhecimento, medo. Para ela, todas essas variáveis impedem uma conversa franca sobre um momento natural e que acontecerá com todos nós. “Quis decidir logo porque, se acontecesse alguma coisa, não iria mais dar tempo”, completa.
E Jundacy quase não teve tempo mesmo: durante o primeiro ciclo da quimioterapia, teve dois choques anafiláticos. Quando sentiu sua glote fechar, pensou que sua hora havia chegado. “Pedi perdão pelas minhas falhas, mas pensei que estava pronta. Sem pânico. Não tenho medo da morte. A morte é um fenômeno tão natural quanto nascer.”
Registro de vontades
A morte nunca foi um mistério para Raimunda Ramalho da Silveira, de 92. A aposentada passou grande parte da vida lidando com os percalços da existência: enfermeira, presenciou inúmeros nascimentos e mortes. No começo da carreira, trabalhou na clínica médica de um hospital do Rio de Janeiro. Lá, viu que muitos pacientes eram internados para morrer. “Aquilo me deixava muito preocupada, tanto remédio para prolongar a vida. O certo é sedar o paciente para que a morte venha sem sofrimento”, opina. “Eu controlava o soro, a pressão deles, ficava naquela agonia para manter o paciente vivo. Ficava pensando: mas se ele vai morrer mesmo, para que tanta coisa?”.
Raimunda Ramalho da Silveira, de 92 anos (foto: Arquivo pessoal )
Quando um familiar de Raimunda sofreu um derrame, ela foi fazer uma visita. O paciente estava internado no Centro de Terapia Intensiva (CTI) de um hospital particular da capital federal. “Olhei no painel que diz quanto oxigênio a pessoa está recebendo e a pessoa estava com 60% de vida artificial – ela não sairia viva dali”, relembra. “A diária custava R$ 1 mil. Eu disse ao meu primo que aquilo era um verdadeiro saneamento econômico para o hospital.” Dois meses depois, o parente de Raimunda faleceu.
O episódio a marcou profundamente. Raimunda achou aquele tratamento inadequado, com medicações excessivas e um investimento monstruoso para uma situação em que a vida não conseguiria vencer. “Pensei: não vou deixar que isso aconteça comigo.” Os anos se passaram, Raimunda se aposentou e, aconselhada pelo geriatra, resolveu deixar registrada sua vontade de não permanecer viva caso venha a depender de aparelhos para tal. “Assinei os papéis consciente de que estava fazendo a coisa certa”, reforça. “Quando for a minha hora, não quero que me deem oxigênio ou que façam traqueostomia, quero que me sedem. De que adianta passar quase dois meses no hospital, com 60% de vida artificial, para morrer do mesmo jeito?”, questiona.
FASE TERMINAL
Desde 2012, é possível registrar em um prontuário a quais procedimentos o paciente quer ser submetido no fim da vida. A Resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que qualquer pessoa (maior de idade e em plena consciência) pode definir com o médico quais os limites terapêuticos na fase terminal. Daniel Azevedo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), acredita que o tabu em torno da morte tem um quê de superstição: evita-se falar sobre ela para não “atraí-la”. “Quando falamos sobre ela, não estamos sendo mórbidos ou atraindo energia negativa”, pondera. “Estamos dizendo exatamente o que queremos e o que não queremos para nós mesmos. Estamos nos mantendo como protagonistas da nossa própria história.”
Há um estudo da Universidade de Stanford em que os pesquisadores perguntaram para um grupo de médicos que procedimentos eles gostariam ou não de receber ao fim da vida, conta Azevedo. Quando perguntados se aceitariam ser entubados, reanimados, receber alimentação artificial em sondas e outros procedimentos dessa natureza, a maioria dos profissionais afirmou que não gostaria de passar por essas situações. “Para alguns desses itens, a média de negação chegou a 98%”, completa o médico. “O fato é que existe um contraponto entre o que os médicos não gostariam que fosse feito com eles e o que fazem com os pacientes. É possível que os próprios médicos não estejam confortáveis para conversar sobre o término da vida.”
As reações acerca da morte variam: dentro do consultório, o geriatra diz que há quem se ofenda, mas há quem se sinta aliviado por tocar no assunto. “Muitos idosos têm vontade de falar sobre o assunto, mas são inibidos pela família ou por seus cuidadores”, completa. “A mensagem é que nunca é cedo demais para dizer aos que nos cercam como gostaríamos de ser tratados. Nossa situação pode mudar da noite para o dia e podemos perder nossa capacidade de comunicação.” A dificuldade de aceitar perder quem se ama é, para Daniel Azevedo, outro entrave na conversa sobre a morte. “É uma armadilha, um egoísmo. Nessas situações, as decisões não são tomadas em prol da pessoa que está lá, mas de acordo com a vontade de algum familiar. Quem está morrendo é que deve ser o ator principal, os outros são coadjuvantes.”
Resolução 1.995/2012
Conhecido como diretiva antecipada de vontade, o documento é uma espécie de testamento vital. Lá, o paciente pode registrar os procedimentos pertinentes e quais não devem ser usados em casos de doenças crônicas ou terminalidade da vida. Ventilação mecânica, tratamentos medicamentosos ou cirúrgicos que causem dor intensa ou reanimação em casos de parada cardiorrespiratória são alguns dos critérios que podem ser incluídos no documento. O registro é formalizado em prontuário. A diretiva antecipada de vontade é facultativa. Só é permitida a maiores de idade ou menores emancipados judicialmente. Crianças e adolescentes não podem fazer o documento (nem os pais podem fazê-lo em nome dos filhos).
Os médicos são treinados para garantir que a vida continue. Contudo, a morte, por vezes, é inevitável. Helena Moura, psiquiatra e psicoterapeuta, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr), comenta que a classe médica também sofre quando não há mais o que ser feito por um paciente. “O doloroso é ter a sensação de que o médico poderia ter feito algo e não fez”, completa. “Temos a impressão de que temos que lutar contra a morte a qualquer custo. Dependendo da situação, essa luta não vale a pena.” Muitos médicos, segundo a psiquiatra, sentem dificuldade em lidar com a morte. “Amparar alguém, então, é quase inviável.”
Lidar com a morte como parte do dia a dia profissional é um desafio emocional. Patrícia Werlang Schorn, oncologista e coordenadora do Centro de Oncologia do Hospital Santa Lúcia, trabalha há 15 anos com pacientes em diversas fases da vida. Ela frisa que não há, na formação dos médicos, nenhuma disciplina para preparar psicologicamente os profissionais nesse sentido. “Vamos aprendendo com o que a vida vai ensinando”, comenta. A sensibilidade para conversar sobre o fim da vida acaba sendo uma habilidade pessoal do médico, avalia a especialista.
Informar quando um paciente não tem mais perspectiva de viver, por exemplo, é algo extremamente delicado. Cabe ao médico decidir como e quando fazer. “Alguns pacientes estão muito preparados para receber notícias duras sobre o fim da vida, e outros não”, completa. “Explico com sutileza, não despejo de forma pesada, e informo claramente como vai ser a evolução da doença. O objetivo é lidar com a boa morte, o que significa que, em algumas situações, atingimos o fim da vida. O esforço contrário é em vão.”
Entender os próprios limites como profissional é outro grande desafio para os médicos. “Quando escolhi a oncologia, um colega me disse que eu perderia todas as batalhas. Acho que a oncologia, apesar do contato iminente com a morte, me faz pensar todos os dias sobre os valores da vida. A vida tem várias formas de terminar, não necessariamente com a morte do corpo. Pode acabar quando a vida perde a graça, por exemplo”, reflete Patrícia.
O hematologista Eduardo Flávio Ribeiro, membro titular da Sociedade Brasileira de Hematologia e professor de hematologia da Universidade de Brasília (UnB), também convive com a morte diariamente, sem nenhum tipo de acompanhamento psicológico. “Acho que, de certa maneira, todos deixamos de lado um pouco o pensamento da nossa finitude no nosso dia a dia”, opina. “Ficamos envolvidos com questões sociais, de trabalho, financeiras ou de ordem familiar – a morte não é uma questão presente. Temos a impressão de que ela não vai chegar, de que sempre vai dar tempo.”
COMO ESPELHO
Eduardo Ribeiro já presenciou muitas mortes. Para ele, lidar com isso é especialmente duro quando se trata de um jovem. “Além da questão de que aquela pessoa tinha a vida inteira pela frente, tem a questão do espelho. É alguém que poderia ser você, que tem a sua idade, filhos, casamento. A gente esquece que nós, seres humanos, temos um valor incalculável para as pessoas que nos amam.” Quando ainda era residente, Eduardo acompanhou um paciente diagnosticado com câncer de pulmão metastático, já fora de possibilidade de cuidados terapêuticos. Os médicos, sem poder fazer qualquer outra coisa, criaram um espaço para que a família se despedisse do paciente com privacidade. “Quando ele deu o último suspiro, a esposa dele me disse que quem eu estava vendo morrer não era mais um paciente, mas o amor da vida dela, com quem ela tinha escolhido viver. Nunca vou me esquecer disso.”
Mesmo com mais de duas décadas de experiência, o médico não se considera preparado para a morte. Mas a encara de maneira a ajudar ao máximo quem está passando por ela, seja com conhecimento técnico ou mesmo conselhos financeiros. “Falamos sobre expectativa de vida, viagens que ele ainda queira fazer, sonhos”, enumera. “Muitas vezes, a gente espera ouvir a pessoa dizer que fumava, bebia. O que ocorre é que muitos dizem que passaram a vida inteira só trabalhando. O que aprendi é que a vida nem sempre é justa, mas temos que viver o presente. Fazer o que gostamos, ter um planejamento, mas ficar no presente, no médio prazo. Saber que muitas pessoas só se deram conta do quanto é importante a vida no último momento é muito doloroso. Precisamos ser menos mecânicos e mais humanos.”
Planejamento funerário
Especialista em educação financeira, Reinaldo Domingos pontua que o planejamento é importantíssimo para evitar que o momento seja ainda mais delicado (foto: Marco Antonio Sá/Divulgação)
Preparar-se para o fim da vida inclui muitos tipos de planejamento. Além dos procedimentos médicos, é preciso levar em conta os aspectos financeiros. Jazigo, cremação, velório, seguro de vida e muitos outros itens entram na lista de gastos funerários. Reinaldo Domingos, doutor em educação financeira e presidente da Associação Brasileira de Educadores Financeiros (Abefin), pontua que decisões desta natureza, infelizmente, costumam ter altos custos. Planejamento, portanto, é importantíssimo para evitar que o momento seja ainda mais delicado.
Pesquisar, fazer escolhas e orçar serviços e produtos necessários, de acordo com o especialista, são passos indispensáveis. Ter uma poupança é uma das recomendações de Domingos. Explicar a finalidade do dinheiro para parentes e/ou cuidadores do paciente é outra orientação valiosa. “Há também gastos com caixão, traslado, manutenção do jazigo e exumação, o que pode pesar no bolso dos familiares”, completa. “Com certeza, a poupança será uma preocupação a menos para eles.” (Veja quadro.)
Aspectos a serem considerados
» Jazigo
Caso deseje ser enterrado/a, é importante procurar saber se familiares e amigos dispõem de jazigos que podem ser usados por sua família. Em caso negativo, é válido pesquisar e orçar os custos, lembrando que serviços funerários podem ser contratados e pagos com antecedência. Consulte pacotes – eles podem ser mais vantajosos.
» Cremação
Em muitos casos, essa opção é mais barata do que o enterro, considerando especialmente as despesas com manutenção. É válido procurar empresas confiáveis e que pratiquem um bom preço, deixando a indicação e os contatos com os familiares. Contratar e pagar com antecedência é uma garantia de que tudo ocorrerá de forma segura e tranquila.
» Velório
A maioria dos locais que prestam o serviço de enterro e cremação oferece espaço para o velório. Caso não haja essa possibilidade, é importante buscar um espaço que atenda às necessidades da família, orçando os valores com antecedência. É válido incluir no orçamento as despesas com flores, cujo preço pode variar bastante.
»Testamento
Para quem tem patrimônio, investimentos ou acredita que a partilha dos bens pode gerar dor de cabeça, é válido buscar o respaldo de um advogado e elaborar o documento com antecedência, considerando tanto seus desejos quanto as necessidades dos que ficam.
» Seguro de vida
É muito importante ter uma reserva financeira ou seguro de vida que garanta proteção aos familiares, para que tenham suporte para manter seu padrão de vida caso uma fatalidade ocorra. Na maioria dos casos, a indenização abrange a invalidez em decorrência de doença ou acidente.
» Doação de órgãos
Caso tenha esse desejo, com a consciência de que poderá beneficiar outras pessoas, manifeste-o aos familiares e amigos mais próximos para que isso não seja esquecido. Afinal, a disposição será cumprida pela família.
Fonte: Reinaldo Domingos, doutor em educação financeira e presidente da Associação Brasileira de Educadores Financeiros (Abefin)
Texto publicado no Portal Uai - O grande portal dos mineiros - www.uai.com.br
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Vida após a vida.
sexta-feira, 21 de abril de 2017
Fragmentos de Memórias de Jequitibá
Recebi mensagens de amigos e ex-colegas que estudaram no Colégio Evangélico de Alto Jequitibá comunicando a ideia de se escrever artigos que lembrassem a passagem e lembranças de cada um durante seus anos em Jequitibá, para publicação em um livro que a Associação de ex-alunos está pretendendo lançar.
A principio não me motivei a escrever por vários motivos,ter estudado apenas 2 anos lá (1960 e 1961), sem tradição familiar de gerações que estudaram, não ter o dom da escrita, ter retornado a Jequitibá apenas em duas oportunidades, uma vez retornando de férias com minha família, fui mostrar onde tinha estudado, tentar rever algumas pessoas que me marcaram positivamente e relembrar momentos vividos. Outra vez foi em um 7 de setembro, juntamente com um grupo de amigos ex-alunos.
Minhas lembranças são poucas, mas sempre estiveram claras em minhas memórias. As amizades se mantiveram, poucas em contatos mais permanentes, outras mesmo à distância se mantiveram vivas e afetivas, em alguns casos se tornaram uma lista de nomes guardados em um canto da memória.
Passei a pensar como fui parar em Jequitibá. Moleque folgado sendo criado em cidade grande, fazendo meus limites, vendo meus amigos Euzébio Cabral e Carlos Magno Cabral, amigos e vizinhos de rua, se preparando para voltar aos estudos em Jequitibá, acabei sendo motivado e apoiado com muito esforço financeiro pela minha família, a ir para o internato. Assim foi.
Chego num voo da Aerosita Táxi Aéreo, um avião Bonanza, aeronauta de primeira viagem, vejo a aterrissagem num alto de morro, pista meio em curva e lá esperando um Jeep com capota de aço, do Pedrinho. Descida e chegada a cidade. Pensei, deve ser um bairro mais afastado. Mal sabia que era a rua principal, e o prédio do internato surge inteiro.
Recepcionado pelo Juarez, encaminhado ao dormitório "3 do prédio velho", escolho cama, recebo primeiras orientações de como me organizar, mesa de cabeceira com toalha de banho e mala de objetos de uso pessoal e escolar, rouparia para guardar a mala maior. Uso de lavanderia, fazer o rol de roupas a lavar. Horários de refeições, banho , de aulas, de estudo, recreio, assembleias, cinema nos fins de semana, dias de educação física.
Sobre o permitido, e sobretudo o proibido: Fumar, roubar frutas em quintal alheio, nadar nos riachos, sair do perímetro urbano, beber e jogar valendo dinheiro. Esses eram os itens mais desejados e provocadores.
Primeiro fim de semana, fomos novatos e alunos antigos nadar na água mineral. Saímos do perímetro urbano, caímos na água, aparecem dois regentes, todo mundo de volta ao internato e primeiro castigo, gelo e próximo fim de semana sem sair do internato e ficar confinado no refeitório. A coisa era para valer. Não haveria moleza.
Primeiras amizades com alunos internos e externos. E as tentativas de se fazer o proibido era cada vez mais provocador.
Romper com as regras era a regra.
Foi onde mais estudei em minha vida, descobri que havia o "Quadro de Honra," para alunos que tiravam média de 8,5 nas notas. Prêmio, sair do internato todas as quartas - feiras à tarde, após os estudos, poder ir ao culto na igreja evangélica e as missas da igreja católica realizados em horários noturnos.
Cada saída, era romper os limites do perímetro urbano era a aventura, voltar com a fronha cheia de laranjas de quintais ou fazendas alheias e entrar com ela sem ser pego pelo Juarez ou algum regente, era a vitória.Depois, era compartilhar com os amigos mais chegados.
Lembro-me das disputas esportivas dos times futebol e basquete, Sabia jogar basquete, mas era novo para os padrões e futebol era reserva do time do BV (Boa Vontade). Verdadeiro perna de pirata.
As assembleias nas datas festivas, tinham discursos do João Barra, com seu terno de linho branco, do Ziba, e as pregações do Reverendo Cícero Siqueira ou de Dona Cecília.
Os grêmios de cada turma se reuniam e todos tinham que participar, fazendo o que gostasse, cantar, recitar,tocar instrumento, contar piadas limpas, dançar, isso valia ponto para nota e havia o júri composto por alunos que davam notas a cada apresentação. A pior era : "cumpriu com a sua obrigação".
Tinha o Ênio, dando bronca a cada vez que cantávamos os hinos com as letras modificadas (Entrou um bichinho no meu nariz, sai bichinho, sai bichinho) ou arrastávamos os pés sempre que havia a famosa frase: "Alguém tem alguma coisa a comentar?". Aí era bronca do Ênio " O sô, faz isso não sô, quer ficar de pé lá na frente? Quer ficar de castigo"?
Os dias de cinema, aos sábados, eram aguardados com expectativas e quem tinha dinheiro recebido pela mesada autorizada e bancada pela família, comprava pipoca no carrinho, balas e doces na carrocinha do Sr. Silas.
Filme que tinha beijo, um Zé Mané colocava a mão na frente da tela, era a censura moral tupiniquim em ação. Aí, a vaia corria solta. Luzes acendidas e ameaças de se encerrar a seção de cinema. Melhor acabar de ver o velho filme censurado, do que ter que ir mais cedo para a cama.
Era com o Sr. Silas que também se comprava bananas para mandar fritar na cozinha e compartilhar pedaços com todos da mesa, manjar dos deuses, juntamente com a carne moída das quartas - feiras e a de porco aos sábados, quando havia. Aliás, sempre que havia carne moída ou de porco, alguém colocava um fio de cabelo no prato, isso depois de comer pouco mais da metade da comida e reclamava. Recebia um "prataço" cheio de comida vindo da cozinha e com muita carne. Pelo menos, por duas vezes, consegui a recompensa.
Os porcos capadões grandes eram limpos estripados e cortados em pedaços para serem fritos e servidos, foi a primeira vez que vi como se fazia o "porquicídio" sendo praticado nos fundos da cozinha do internato.
Justiça seja feita, o pessoal que trabalhava na cozinha, lavanderia, serraria e limpeza ralavam e pegavam no pesado. Destaque para os colegas que eram serventes do refeitório.
Isso os redime do dia em que serviram um bolo de mandioca com molho de tomate por cima, foi uma infecção intestinal generalizada. A salmonela pegou firma e foi uma caganeira geral. Tinha privada com fila de espera de 2, 3 alunos, apressando o que estava a usar a dita cuja.
Imaginem o caos que foi, não havia descarga, isso era feito com uma lata d'água. Só não havia latas suficientes e nem tempo, desespero total.
Nós eramos realmente protegidos pela sorte e todos os tipos de anjos e santos, pois no dia em que faltou água foi permitido tomar banho no córrego que corria nos fundos do internato, íamos em grupos controlados por regentes. A ordem era,entrar, molhar, sair, ensaboar e entrar para enxaguar o corpo. Tínhamos que ficar de olho nos detritos que desciam boiando, saídos dos esgotos das casas que ficavam nas margens do córrego. Ninguém pegou uma doença de pele ou infecção qualquer. Mas, nadar era proibido.
Havia um aluno que morava , creio duas casas abaixo do internato, onde a turma dos atletas se reuniam para exercícios, não me lembro do nome, lembro que subia e descia o córrego remando em uma canoa, parecia um índio ou Tarzã. Engraçado como certas imagens ficam grudadas na memória tantos anos depois.
Me lembro, também, dos apelidos, alguns eram herdados de alunos que por lá passaram, outros eram novos. Cheiroso, padeiro, vaqueiro, boiadeiro, tarzã, índio, caolha, João peneném, benguela, zunha, brigite, brigitinha, zé capeta, zé paulada, bom bril, bode, bodinho,ratinho, caratinga, barão, cuia e outros mais.
Recordo da Banda Marcial, também conhecida como Banda Marginal, alguns insubordinados renitentes eram escolhidos para a banda para uma terapia musical e funcionou com muitos. Na festa católica do mês de maio, mês de Maria, a furiosa da igreja católica fazia uma apresentação , bem cedo, ao lado do prédio velho do internato, na praça ao lado, dando início as festividades.
Esse dia era esperado com viva ansiedade pelos alunos novatos, já que os antigos contavam que jogavam sapatos velhos, bolas de gude e o que mais tivessem escondido na sua mesa de cabeceira. Aos primeiros foguetes espocados e acordes da furiosa, dois alunos jogaram algumas coisas. Foi o suficiente para os regentes acabarem com a brincadeira no início.
Gostava de ver a disputa das duas bandas no desfile de 7 de setembro, quando uma passava pela outra, cada uma tocava mais vibrante para tentar abafar e superar o som da outra. Teve um ano, que um aluno do internato jogou uma mamucha de laranja na tuba da furiosa da igreja católica, o que gerou um grande bafafá.
As aulas de educação física, eram cedinho, no inverno uma neblina brava e um frio do cão. Depois de correr e fazer ginástica, vinha o pior, tomar o banho frio, tão gelado que doía a cabeça. Depois era tomar o café e e ir para as aulas.
Tinha a turma do "atletas" que faziam musculação nos fundos da serralheria com equipamentos improvisados. Havia a dos fumantes,essa bem maior do que a dos atletas. Fumavam nos fundos do pavilhão , atrás das casas de professor e do diretor. Vinham os regentes era jogar fora os cigarros, pisar em cima para eliminar a prova do crime. Quando alguém era pego, cumpria castigo por "FUMAR ESCONDIDO" e para coibir o fumo, quem estava na roda , mesmo sem fumar, pegava uma pena de "SUSPEITO DE FUMAR", Não adiantava nadica de nada. Se soubessem que tudo que é mais reprimido e proibido, tornava o fruto mais saboroso, não tentariam reprimir e punir.
Num dia muto frio de inverno, descobri a melhor utilidade para o lápis de cor banca de meu estojo de lápis de cor. Cortei um no tamanho de um cigarro, colori a ponta misturando cor preta e vermelha. Atravessei a quadra de basquete soltando a fumaça do frio, com o "cigarro" nas mãos e levando a boca fazendo cena de que fumava. Vários alunos me viram e acharam que eu estava maluco, veio um regente e começou a me dar bronca e querendo me punir. Dei uma baita risada na cara dele e mostrei o cigarro de lápis. O camarada ficou com uma cara de tacho e com uma baita vergonha pois caiu no ridículo na frente de muita gente. Foi pior para ele que ainda tentou se impor. Dei-lhe mais uma boa risada e perguntei se era proibido se divertir.
Na véspera das férias, era reservar lugar nos trens que partiam para o Rio de Janeiro e Manhuaçu. Contavam-se histórias das viagens de ambos os ramais. Eu ia para Manhuaçu, para passar uma noite no hotel e pegar o ônibus para Belzonte no dia seguinte. A liberdade de comprar cerveja e cigarro, levar escondidos para o hotel e beber e fumar até tarde da noite, em companhia de companheiros de viajem, julgando-se um adulto sem medo da repressão.
Quando o trem parava em Manhumirim, muitos de nós íamos ao banheiro para fazer xixi e cocô, só para deixar rastros na estação.
Numa das férias de meio de ano, fomos recepcionados por pessoas, inclusive alguns colegas de internato, para defenderem a sua cidade de nossa insanidade. Muitos de nós não desceram do trem, alguns foram comprar lanches, esperar o trem começar a andar e sair correndo com a famosa frase "PAGO NA VOLTA", contava-se que para o Rio coisas similares aconteciam.
Jogávamos futebol dentro do trem e quando o trem diminuía a sua velocidade para se engatar na cremalheira para ajudar na subida da serra, com o trem em movimento descíamos do primeiro carro e subíamos novamente no último carro da composição.
Quero aproveitar para pedir desculpas por ter colocado formigas lava pés e açúcar, em camadas, entre o lençol, o cobertor e a colcha na cama de um colega de dormitório, que havia balançado minha mala da mesa de cabeceira e me dado o maior trabalho para limpar a mala, e todo o meu material escolar guardado. Pois um vidro de mel abriu e melou tudo.O pobre coitado , não conseguiu dormir, a noite foi de muito frio, levou muitas ferroadas e o regente teve que arrumar outra cama para ele terminar a noite. Não me lembro, agora, tanto tempo depois, o nome dele. Se ainda estiver vivo e ler esse texto. Me desculpe!!!
Enfim, foram dois anos que deixaram boas lembranças, amizades e conceitos que mudaram minha vida, que ajudaram a mudar minha forma de ver o mundo e de vivê-lo.
É isso, sou um jovem "gastinho" de 71 anos, chegando aos 72, que guarda em um canto da memória e do coração as melhores lembranças de seu tempo de aborrecente vivido saudavelmente aos seus 15 e 16 anos em Jequitibá.
Um abraço do tamanho do Universo para todos e muita falta de juízo.
Carta de uma idosa
Arte do dia - Desfotografando - Abstrato 1
Alguns dos familiares visitam seus parentes, mas a maioria dos idosos espera anos e anos por uma simples chamada, que nunca chega… Atualmente, as pessoas estão ocupadas com o seu dia a dia, e não se lembram, ou não querem lembrar, de visitar quem os criou.
E assim, tristes e depressivos, a morte chega para os mais velhos, depois de anos de solidão. Foi o que aconteceu com essa mulher.
As enfermeiras pensavam que ela já estava senil, e que estava só esperando o dia de sua morte. Elas costumavam murmurar coisas para si mesmas, pensando que a idosa não percebia o que diziam… Mas quando ela partiu desse mundo, seus cuidadores encontraram uma carta que fez com que todos ficassem de queixo caído!
“O que é que vocês veem, enfermeiras? O que é que vocês veem?
O que é que vocês pensam quando me olham?
Uma velha rabugenta, não muito inteligente.
Com hábitos estranhos e olhar distante.
Aquela que a comida cai dos cantos dos lábios e nunca responde.
Aquela a quem dizem alto: ‘Pelo menos você poderia tentar’.
A que parece não ter consciência das coisas que vocês fazem.
E que sempre perde alguma coisa. A meia ou o sapato?
Aquela que, sem resistir ou não, deixa que vocês façam o que quiserem.
Que passa grande parte de seus dias no banheiro ou a comer.
É isso que vocês acham? É isso que vocês veem?
Pois então, enfermeiras, abram seus olhos, você não me veem.
Vou vos dizer quem eu sou, agora que estou sentada, fazendo o que vocês me dizem e comendo o que vocês pedem:
Eu sou uma garota de 10 anos, com pai e mãe,
irmãos e irmãs, que se amam.
Uma menina de 16 anos com asas nos pés,
que sonha em breve encontrar o amor.
Uma noiva de 20 anos, com o coração aos saltos,
Recordando os votos que prometeu cumprir.
Com 25 anos já tem seus próprios filhos,
que vai orientar e a quem vai fornecer um lar seguro.
Uma mulher de 30 anos, cujos filhos crescem rápido,
Unidos com laços que devem durar.
Aos 40, meus filhos jovens cresceram e se foram.
Mas meu marido está comigo para que eu não fique triste.
Aos 50, voltam a jogar bebês novamente no meu colo.
Eu e o meu amor voltámos a conhecer crianças.
Dias negros se aproximam, meu marido está morto.
Olho para o futuro e estremeço.
Meus filhos têm os seus próprios filhos.
E penso nos anos e no amor que conheci.
Agora sou uma mulher velha. A natureza é terrível.
Eu rio da minha idade como uma idiota.
Meu corpo está frágil. A graça e a força se despedem.
Agora só existe uma pedra onde batia o coração.
Mas dentro dessa velha carcaça ainda vive uma jovem mulher.
E o meu coração maltratado incha.
Lembro-me das alegrias, lembro-me das tristezas.
E eu vivo e amo todos os dias.
Penso nos anos, tão poucos e que foram tão rápido.
Eu aceito o fato de que nada é para sempre.
Então abram seus olhos. Abram e vejam.
Nada de velhas resmungonas.
terça-feira, 3 de janeiro de 2017
Deixem-me envelhecer - Silvana Freygang em Faculdade da Felicidade
Foto: UNIVERSO - LUA CHEIA - CHILE 2016
Deixem-me envelhecer sem compromissos e cobranças,
Sem a obrigação de parecer jovem e ser bonita para alguém,
Quero ao meu lado quem me entenda e me ame como eu sou,
Um amor para dividirmos tropeços desta nossa última jornada,
Quero envelhecer com dignidade, com sabedoria e esperança,
Amar minha vida, agradecer pelos dias que ainda me restam,
Eu não quero perder meu tempo precioso com aventuras,
Paixões perniciosas que nada acrescentam e nada valem.
Deixem-me envelhecer com sanidade e discernimento,
Com a certeza que cumpri meus deveres e minha missão,
Quero aproveitar essa paz merecida para descansar e refletir,
Ter amigos para compartilharmos experiências, conhecimentos,
Quero envelhecer sem temer as rugas e meus cabelos brancos,
Sem frustrações, terminar a etapa final desta minha existência,
Não quero me deixar levar por aparências e vaidades bobas,
Nem me envolver com relações que vão me fazer infeliz.
Deixem-me envelhecer, aceitar a velhice com suas mazelas,
Ter a certeza que minha luta não foi em vão: teve um sentido,
Quero envelhecer sem temer a morte e ter medo da despedida,
Acreditar que a velhice é o retorno de uma viagem, não é o fim,
Não quero ser um exemplo, quero dar um sentido ao meu viver,
Ter serenidade, um sono tranquilo e andar de cabeça erguida,
Fazer somente o que eu gosto, com a sensação de liberdade,
Quero saber envelhecer, ser uma velha consciente e feliz!!!
Silvana Freygang
domingo, 27 de novembro de 2016
"O TEMPO PASSOU E ME FORMEI EM SOLIDÃO" - José Antônio Oliveira de Resende
Sou do tempo em que ainda se faziam visitas.
Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido.
Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé.
Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de paraquedas mesmo.
E os donos da casa recebiam alegres a visita.
Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto!
- Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos.
Aí chegava outro menino.
Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala.
Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre.
Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre.
Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... casa singela e acolhedora.
A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras.
Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes.
Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente uma das filhas – e dizia:
*– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.*
Tratava-se de uma metonímia gastronômica.
O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam.
As gargalhadas também.
Pra que televisão?
Pra que rua?
Pra que droga?
A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança...
Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam.... era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade...
Quando saíamos, quase sempre antes das 22:00 h, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina.
Ainda nos acenávamos.
E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida.
Era assim também lá em casa.
Recebíamos as visitas com o coração em festa...
A mesma alegria se repetia.
Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta.
Olhávamos, olhávamos... até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão.
Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, internet, e-mail, celular, Whatsapp ...
Cada um na sua e ninguém na de ninguém.
Não se recebe mais em casa.
Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!... – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas.
Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas...
Pra que abrir?
O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos de nata...
*Que saudade de um compadre e de uma comadre!...*
Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido.
Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé.
Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de paraquedas mesmo.
E os donos da casa recebiam alegres a visita.
Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto!
- Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos.
Aí chegava outro menino.
Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala.
Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre.
Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre.
Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... casa singela e acolhedora.
A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras.
Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes.
Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente uma das filhas – e dizia:
*– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.*
Tratava-se de uma metonímia gastronômica.
O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam.
As gargalhadas também.
Pra que televisão?
Pra que rua?
Pra que droga?
A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança...
Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam.... era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade...
Quando saíamos, quase sempre antes das 22:00 h, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina.
Ainda nos acenávamos.
E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida.
Era assim também lá em casa.
Recebíamos as visitas com o coração em festa...
A mesma alegria se repetia.
Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta.
Olhávamos, olhávamos... até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão.
Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, internet, e-mail, celular, Whatsapp ...
Cada um na sua e ninguém na de ninguém.
Não se recebe mais em casa.
Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!... – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas.
Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas...
Pra que abrir?
O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos de nata...
*Que saudade de um compadre e de uma comadre!...*
Créditos: José Antônio Oliveira de Resende
Professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João del-Rei.
Professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João del-Rei.
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quinta-feira, 24 de novembro de 2016
CONSELHOS DE PUTA VELHA - CASA DAS BRUXAS JADE FÊNIX
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O lingerie de seda, o perfume importado e o jantarzinho a luz de velas com vinho caro é para quem merece.
Algumas mulheres têm mania de pegar um ficante que encontrou há a uma semana na balada, levar pra casa e tratar como um rei. Tratamento vip é para namorado firme e marido, se merecerem. Porte-se como uma joia rara e como tal não se doe facilmente para o primeiro que aparecer, não importa o nível da sua carência, seja valiosa.
Pare de ser tão boazinha.
Abrir mão do que gosta, mudar o jeito de ser, deixar de se divertir, só porque começou um relacionamento e está apaixonada?
Homem gosta de mulher com vida própria, orbitar em volta dele é receita certa para o fracasso, ele pode momentaneamente demonstrar que gosta deste estilo, mas logo se cansa.
No fim você perde o namorado e os amigos.
Sem contar que ele não vai abrir mão de assistir futebol para ficar com você. Use o mesmo critério para lidar com ele e no fim ele estará te acompanhando em tudo, feliz da vida, afinal é muito bom estar ao lado de pessoas que tem vida.
Pare com os joguinhos.
Os casais perdem a oportunidade de se conhecer de verdade e sem máscaras.
Está manjado demais transar só no terceiro encontro, não responder a mensagem antes de 60 minutos, só atender o telefone no quinto toque, fazer ciúmes sem necessidade e fingir que não dá a mínima. Encontrar o equilíbrio entre ser disponível demais e ser inacessível está difícil.
Ninguém mais demonstra interesse e tesão pelo outro de forma saudável.
Nunca sabemos se o outro não liga no dia seguinte porque não está interessado ou porque está se fazendo de difícil para valorizar o passe.
Ter tato para não perder a dignidade e saber a hora de bater em retirada é importante, mas um pouco de transparência e sinceridade não faz mal a ninguém.
Se for fazer joguinho, seja inteligente, crie novos truques, pois alguns já estão batidos demais.
Jamais se rebaixe.
Não importa qual foi a traição, a culpa é do seu parceiro e não da “vagabunda” que ele comeu, a não ser que ela tenha colocado um revolver na cabeça dele.
Essa história de mulher bater na amante é ridícula.
Nenhum homem é digno de escândalos e manifestações públicas de ciúmes, isso inclui as indiretas nas redes sociais.
Mesmo que tiver chorando lágrimas de sangue, fique em cima do salto, ninguém precisa saber da sua condição miserável, não dê esse gostinho para as inimigas e para algumas amigas falsas e invejosas. Aprenda, para algumas pessoas só contamos as vitórias!
Seja você mesma.
A performance do filme pornô de quinta categoria não precisa necessariamente ir para sua cama, nada mais patético que a mulherada que finge orgasmo e ainda quer contar vantagem “ pras amiga”.
Sem contar que se a coisa for forçada demais o homem percebe.
Já ouvi depoimentos de caras que simplesmente brocharam em situações assim.
Nada contra quem gosta do estilo e faz porque realmente gosta e está com vontade, mas tudo que é falso e feito somente para tentar impressionar o outro pode gerar efeito contrário.
A diferença entre ser feminina e mulherzinha.
Homem quer ser homem, o chefe da casa.
Suba na cadeira e chame o gato pra matar a barata, peça-o para abrir a conserva de azeitona e trocar a resistência do chuveiro (essa é uma lição que ainda não aprendi).
Quando o macho alfa terminar, não esqueça de agradecer e elogiar tanta virilidade
Não importa se você é presidente de uma multinacional e ganha cinco vezes mais que ele, seu parceiro vai adorar uma mulher feminina que o valorize enquanto homem e que o faça sentir-se útil (isso se ele merecer).
A mulherzinha olha a marca do carro, dá golpe dá barriga e é manipuladora, faz escândalo por qualquer coisa, quebra as finanças do parceiro, requer atenção total, mas é afetivamente mesquinha, só recebe.
Mulherzinha, ai que preguiça!
Para os leitores que levam tudo ao pé da letra, é claro que esse é um exemplo, existem infinitas possibilidades para valorizar um homem, e não podemos limitá-los apenas a matadores de baratas e abridores de conservas.
Escolha bem seu parceiro use a razão não só o coração.
A mulherada lutou e luta tanto por igualdade, mas hoje tem jornada dupla e até tripla para dar conta da vida profissional, casa, filhos e marido.
Queria saber onde está a igualdade nisso, pois enquanto a mulher se desdobra, muitos maridos estão no sofá assistindo tv ou no bar com os amigos.
Quando for se relacionar com alguém, antes de se envolver loucamente em um amor de pica sem fim, preste muita atenção na sogra, veja como ela trata os filhos.
Dá tudo na mão, recolhe os sapatos e meias sujas pela casa, faz o pratinho de comida com o feijão em cima, lava as cuecas, defende cada um até a morte mesmo que estejam errados?
Se for esse o caso, AMIGA CORRAAAAA!
Caso contrário, você será uma forte candidata a Amélia emancipada.
O borogodó – Magnetismo pessoal e amor próprio vale mais que um corpo sarado.
A mulherada está caprichando tanto no treino, na lipoaspiração e no silicone, mas o número de fracassos amorosos não diminui.
Outra ala se sente gorda demais e sem autoconfiança para atrair o sexo oposto, mas também não faz nada para mudar.
Existem mulheres que aparentemente não possuem nada de especial, podem até ser “feias”, porém, por alguma razão os homens caem aos seus pés.
Esse magnetismo em algumas mulheres vem de onde?
O que elas têm é independência emocional, se apoiam sozinhas, se bastam, tem outras metas além de agarrar um homem, estudam, trabalham, viajam e são felizes sozinhas ou acompanhadas.
Não vivem carentes chorando pelos cantos, não são cheias de mágoas, não pegaram ódio dos homens por conta de decepções do passado.
Aconteça o que acontecer, essas mulheres estão sempre de cabeça erguida e tem uma vida que não se limita apenas em se arrumar para encontrar um macho.
Seja uma puta entre quatro paredes e o que quiser na sociedade. Afinal o que é ser uma dama na sociedade?
A Amélia emancipada devotada à família, a esposa renegada que trabalha que nem camela para dividir com o marido as contas de casa?
Tem algo mais irritante que estereótipos do que é ser uma boa mãe e esposa?
E a quantidade de cobranças que recebemos quando não atendemos esse modelo?
E essa mulher resignada e atarefada, consegue ser o mulherão que os homens adoram entre quatro paredes? Claro que não!
Conheço casais que nunca conversaram sobre suas preferências e fantasias sexuais.
Tudo bem que não é fácil manter o tesão a todo vapor 100% do tempo, mas quanto vale o seu relacionamento?
Será que ele não merece um pouco mais de investimento?
Nem é tão difícil assim satisfazer um homem, faça bem feito, faça com gosto, mostre que ele é desejado (se ele merecer) nem precisa se pendurar no lustre e saber todas as posições do kama sutra, basta tirar algumas horas para dedicar exclusivamente a ele, com amor, carinho e uma pitada de sacanagem, por que não?
Por ele sim vale investir no jantarzinho a luz de velas, no lingerie de renda e no vinho caro.
Esse título foi inspirado por uma grande amiga, prostituta aposentada, que acumulou uma experiência de vida que poucas vezes vi igual.
Na verdade, ela tem a idade da minha mãe e sempre me deu conselhos dizendo: – Ouve o conselho dessa puta velha!
Por incrível que pareça, toda vez que não seguia os conselhos dela me dava mal.
Esta mulher até hoje tem em suas mãos tudo que quer e um poder de atração de dar inveja a qualquer ninfeta de 20 anos, soube investir todo dinheiro que ganhou e tem uma vida mais que tranquila ao lado do grande e único amor de sua vida.
E quando pensamos em puta, pensamos logo em promiscuidade e vender o corpo, mas tem muita puta por aí mais digna e honesta que certas mulheres tidas como “damas da sociedade”, mas que já se venderam mais que tudo e por muito pouco.
Histórias assim são para quebrar os paradigmas e fazer repensar alguns valores, sem contar que chacoalham os puritanos, as feministas e críticos de plantão.
domingo, 6 de novembro de 2016
LIÇÕES DE UMA TRISTE FIGURA - Dilson Marques
Imagem: Internet
Sempre fui fã de filmes e romances de cavalaria. Rei Artur, Lancelote, Gawain, Ivanhoé e Ricardo Coração de Leão, enchiam minha cabeça de menino não apenas de atos de bravura física, mas de ética, coragem moral e companheirismo.
Já mais adolescente, quando geralmente abandonamos, ou até mesmo passamos a nos envergonhar das coisas de menino, fui apresentado a Dom Quixote de La Mancha.
O mais interessante é que quem me recomendou o livro tinha por intenção alertar sobre os perigos da leitura em excesso. O bom fidalgo, de tanto ler, enlouquece, e passa a ver tudo sob o manto da fantasia, ou do personagem por ele assumido. Um Cavaleiro da Triste Figura, magro, velho, alquebrado, cavalgando um pangaré com uma bacia de metal na cabeça, um escudo e espada de terceira, e uma vontade imensa de acabar com os perigos do mundo.
Graças a Deus, não peguei medo da leitura. Graças a Deus, um pouco da loucura e principalmente das lições dessa Triste Figura, me marcaram por toda a vida.
Aprendi com Quixote que, para ser cavaleiro, basta a coragem, a vontade e a ousadia. As armas, bem, uma bacia (ou panela como mostrou Ziraldo), uma espada enferrujada, uma lança de madeira, um escudo feito por uma bandeja, um pangaré às portas da morte, e uma estrada pra seguir em frente.
Ensinou-me também Quixote, que a mulher que amamos sempre será uma nobre ou princesa, e que seus amigos e companheiros são heroicos e valentes.
Aprendi que a casa que me acolhe, por mais humilde que seja, é um castelo. Que existe uma magia ruim, tentando me fazer ver as coisas diferentes do que são.
Mas a principal lição é aquela de que o verdadeiro cavaleiro põe à disposição da justiça e dos injustiçados sua força e suas armas. E quanto maior e mais forte for o adversário, proporcionalmente o será a glória de enfrentá-lo.
Ah, e aprendi a não dar ouvidos quando me dizem que são moinhos, não são não. São ogros gigantes que querem nos engolir. São imensos e malévolos seres, que se alimentam de almas, que devoram espíritos e vontades.
Cavaleiro da Triste Figura, que ao voltar pra casa conclui que não existem mais heróis, apesar das injustiças muitas pela estrada em diante.
Cavaleiro da Triste, Ridícula e Amada Figura, vem comigo a recolher as luvas atiradas em desafio e a provar a todos que devemos “lutar, quando é fácil ceder”. Pegue sua espada, escudo e bacia, e vamos em frente, que os moinhos não nos enganam, são monstros e gigantes, que precisam urgentemente ser derrotados, para que enfim tenhamos um pouco de paz.
sexta-feira, 8 de julho de 2016
Preludio pra ninar gente grande (menino passarinho) - Luiz Vieira
Gravei o vídeo abaixo para registrar como os animais respondem aos sinais de quem não quer fazer o mal .
Vi esse bichinho ser chocado e nascer. Ser alimentado no ninho, até adquirir penas e descer para o chão no seu primeiro voo ensaiado e sem jeito.
Vi esse bichinho ser chocado e nascer. Ser alimentado no ninho, até adquirir penas e descer para o chão no seu primeiro voo ensaiado e sem jeito.
Depois, alçou voos mais ousados, distantes e sempre voltando para perto da mãe.
Foi se acostumando comigo, chegando perto, até que comeu em minha mão.
Durante um almoço, veio e pousou em meu ombro esperando alguma comida.
São momentos mágicos que muitas pessoas conseguem interagindo em paz com a natureza e seus seres.
Sorte minha que consegui e consigo ver a beleza da vida em micros, pequenos e grandes detalhes.
Me sinto um menino que conseguiu ter o seu amigo passarinho, solto, livre para voar, ir e vir, chegar e ficar nas minhas mãos, nos meus ombros, sem medos.
Compartilho esse pequeno e mágico momento com vocês.
Em seguida, publico a letra e vídeo com Luíz Vieira interpretando Preludio pra ninar gente grande - Menino passarinho.
Sorte minha que consegui e consigo ver a beleza da vida em micros, pequenos e grandes detalhes.
Me sinto um menino que conseguiu ter o seu amigo passarinho, solto, livre para voar, ir e vir, chegar e ficar nas minhas mãos, nos meus ombros, sem medos.
Compartilho esse pequeno e mágico momento com vocês.
Em seguida, publico a letra e vídeo com Luíz Vieira interpretando Preludio pra ninar gente grande - Menino passarinho.
Sinto o mundo bocejar.
Quando estás nos braços meus
Sinto a vida descansar.
No calor do teu carinho
Sou menino-passarinho
Com vontade de voar.
Sou menino-passarinho
Com vontade de voar.
quinta-feira, 7 de julho de 2016
POR QUE O SEU FILHO NÃO É UMA CRIANÇA DIFÍCIL - ANANDA URIAS
Crianças são seres cheios de vida, questionadores e inquietos, que estão sempre prontos para descobrir o que tem por trás de um simples ‘não’ e vivem rodeados de ‘POR QUEs’. Hoje, basta uma criança derrubar um copo de suco na mesa de um restaurante, brigar com um amiguinho na escola, questionar uma ordem, procurar explicações para aquilo que ela não entende, que já todos a sua volta praguejam: Nossa, que criança difícil!
Então, senta aqui, amiga que eu vou te falar o que o mundo ainda não percebeu: O SEU FILHO NÃO É DIFÍCIL, O SEU FILHO É UMA APENAS UMA CRIANÇA.
CRIANÇAS NÃO SÃO DIFÍCEIS. DIFÍCIL MESMO É SER CRIADO EM UM MUNDO ONDE AS PESSOAS TEM FILHOS, MAS NÃO TEM TEMPO PARA ELES. Difícil mesmo é viver em um mundo onde as pessoas não respeitam o momento da criança, não tem paciência para os seus infindáveis QUESTIONAMENTOS, não têm empatia pelos seus medos (e que são muitos), não tem vontade de brincar e escutar as suas histórias cheias de fantasias.
Crianças não são difíceis, nós é que não temos tempo de levar uma criança até o parque, brincar no pula pula, jogá-lo para o alto, ensiná-los a andar de bicicleta sem rodinha, pintar o corpo, o papel, o chão, as paredes de casa com tinta enquanto fazem uma obra de artes em família. Perdemos a leveza de um café da manhã em família, a alegria de fazer um simples piquenique no parque ao som de sorrisos infantis, deturpamos os valores de uma infância feliz.
Uma criança ativa hoje é dona de um diagnostico de deficit de atenção, hiperatividade, dificuldade em conviver com o próximo. Uma criança ativa hoje é dopada com altas doses de tecnologia para que não faça barulho, não espalhe os brinquedos pelo chão da sala, não precise da atenção dos seus pais. Dizem até que uma criança ativa hoje é uma criança difícil de se conviver. E todos dizem em um coro só: manda a criança difícil para o psiquiatra, psicólogo, aula de inglês, espanhol, francês, natação, judô e ballet. Porque criança difícil hoje, não tem sequer o direito de brincar ou nada fazer.
Crianças dão trabalho, questionam, brincam, desobedecem, ajudam, atrapalham… e nada disso faz deles uma criança difícil de conviver. Eu demorei muito para descobrir que a dificuldade da minha filha era na verdade, a minha dificuldade em aceitar que ela não iria sempre me obedecer. Crianças não estão no mundo para suprir as nossas necessidades de auto firmação parental. Crianças não estão no mundo para nos fazer ganhar prêmios em competições maternas de redes sociais.
Grandes personalidades da história, foram crianças astutas e inquietas. E é preciso compreender que é DIFÍCIL CRESCER, é difícil descobrir quem somos! No dia que eu aceitei que difícil mesmo é ser criança nesse mundo engessado e cheio de regras, onde crianças são tratadas como adulto, muita coisa mudou por aqui.
O seu filho não é uma criança difícil, ele é apenas uma criança ansiando por viver o que de melhor o mundo tem para oferecer.
Beijos,
Ananda Urias - @maezice
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