Obra de aleijadinho no santuário de N.Sra. do Carmo em Mariana.
Uma das características da obra do alejadinho são os 3 furos nos rostos dos anjos,
um de cada lado do rosto (bochechas) e um no queixo.
SER MINEIRO
Como todo mineiro é um pouco filósofo, há um mistério sobre o qual venho há anos especulando: o que é ser mineiro?
Das reflexões e inflexões que extraí sobre a mineirice, muitas delas colhidas em filosóficas inscrições de rótulos de cachaça e quinquilharias de beira de estradas, eis as conclusões prévias e provisórias, sujeitas a chuvas e trovoadas, a que cheguei.
Ser mineiro é dormir no chão para não cair da cama; usar sapatos de borracha para não dar esmola a cego; sorrir sem mostrar os dentes; tomar café ralo e esconder dinheiro grosso. É desconfiar até dos próprios pensamentos e não dar adeus para evitar abrir a mão. Mineiro pede emprestado para disfarçar a fartura. Se é rico, compra carro do ano e manda pôr meia sola em sapato usado. Mineiro vive pobre para morrer rico.
Mineiro não é contra nem a favor, antes, pelo contrário.
Mineiro fala de desgraça, doença, morte e vive como quem se julga eterno. Chega na estação antes de colocarem os trilhos, para não perder o trem.
Relógio de mineiro é enfeite. Pontual para chegar, o mineiro nunca tem hora para sair. A diferença entre o suíço e o mineiro é que o primeiro chega na hora. O mineiro chega antes.
O bom mineiro não laça boi com embira; não dá rasteira em pé de vento; não pisa no escuro; não anda molhado; não estica conversa com estranhos; só acredita em fumaça quando vê o fogo; pede no açougue lombinho francês; só arrisca quando tem certeza e não troca um pássaro na mão por dois voando.
Mineiro fala de política como se só ele entendesse do assunto; finge que acredita nas autoridades e conspira contra o governo; faz oposição sem granjear inimigos; gera filhos para virar compadre de político; foge da luz do sol por desconfiar da própria sombra vive entre montanhas e sonha com o mar; viaja o mundo para comer, do outro lado do planeta, um tutu de feijão com couve picada.
Ser mineiro é venerar o passado como relíquia e falar do futuro como utopia; curtir saudades na aguardente e paixão em serenatas; dormir com um olho fechado e outro aberto; acender vela à santa e, por via das dúvidas, não conjurar o diabo. Mineiro acende a Deus a vela comprada do diabo.
Ser mineiro é fazer a pergunta já sabendo a resposta. É ter orgulho de ser humilde. É bancar a raposa e ainda tomar conta do galinheiro. Mineiro fica em cima do muro, não por imparcialidade, mas para poder ver melhor os dois lados. Cabeça-dura, o mineiro tem o coração mole. Acredita mais no fascínio da simpatia que no poder das idéias.
Mineiro é isso sô! Come as sílabas para não morrer pela boca. fala manso para quebrar as resistências do interlocutor. Sonega letras para economizar palavras. De vossa mercê, passa para vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, num demora muito, usará só o acento circunflexo! Mineiro fala um dialeto que só outro mineiro entende, como aquele sujeito que à beira do fogão de lenha, ensinava o outro a fazer café. Fervida a água, o aprendiz indagou: "Pó pô pó?" E o outro respondeu: "Pó pô, pô".
Ser mineiro é saber criar bois, filhos e versos. è ir ao teatro, não para ver, mas para ser visto. É frequentar igreja para fingir piedade; rir antes de contar a piada e chorar da desgraça alheia.
Mineiro adora sala de visitas encerada e trancada, na esperança de retorno do rei. Avarento, não lê o jornal de uma só vez para não gastar as letras, e ainda guarda para o dia seguinte para poder ter notícias. Mineiro não lê, passa os olhos. Não fala ao telefone, dá recado.
Praia de mineiro é barzinho, restaurante, balcão de armazém e cerca de curral. Ali a língua rola solta na conversa mole, como se o tempo fosse eterno. Certo mesmo é que o momento é terno.
Ser mineiro é ajoelhar na igreja para ver melhor as pernas da viúva, frequentar batizado para pedir votos e ir a casamentos para exibir roupa nova.
Mineiro vai a enterro para conferir quem continua vivo. Nunca sabe o que dizer aos parentes do falecido, mas fica horas na fila de cumprimentos para marcar presença. Leva lenço no bolso para caso de ter que enxugar as lágrimas da família. Não manda flores porque desconfia que a flora não cumpre o trato e embolsa a grana.
Ser mineiro é esbanjar tolerância para mendigar afeto. É proferir definições sem se definir. É contar casos sem falar de si próprio. Mineiro é feito pedra preciosa: visto sem atenção não revela o valor que tem.
Mineiro é capaz de falar horas seguidas sem dizer nada. Esconde o jogo para ganhar a partida. Cumprimenta com a mão mole para escapar do aperto e acredita que a fruta do vizinho é sempre mais gostosa.
Mineiro age com a esperteza das serpentes, mas se veste com a simplicidade das pombas e encobre suas contradições com o manto do fictício da cordialidade.
Mineiro é como angu, só fica no ponto quando se mexe com ele.
Ser mineiro é fazer cara feia e rir com o coração; andar com guarda-chuva para disfarçar a bengala; fumar cigarro de palha para espantar os mosquitos; mascar fumo para amaciar a dentadura.
Mineiro sabe quantas pernas tem a cobra; escova os dentes do alho; teme rasteira de pé de mesa; toma café ralo para enxergar o fundo da caneca e por via das dúvidas, põe água e alpiste para o cuco.
Ser mineiro é fingir que não sabe o que bem se conhece. Mineiro que não reza não se preza. Religioso, na crendice do mineiro há lugar para todos: o Cujo e a mula sem cabeça; assombrações e fantasmas; duendes e extra-terrestres. Pacífico, mineiro dá um boi para não entrar na briga e a boiada para continuar de fora. mas, se pisam no calo do mineiro, ele conjura, te esconjura, jurado e juramentado no sangue de Tiradentes.
"Minas Gerais é muitas", como disse Guimarães Rosa. É fogão de lenha e comida preparada na panela de pedra sabão; é turmalina e esmeralda; e tropa de burro e rios indolentes chorando a caminho do mar; é sino de igreja e tropeiros mourejando gado sob a tarde incendiada pelo hálito da noite. Minas é mantiqueira e serrado, é aleijadinho e Amílcar de Castro, é Drumond e Milton Nascimento, é pão de queijo e broa de fubá. Minas é uma mulher de ancas firmes e seios fartos, sensual nas curvas, dócil no trato, barroca no estilo e envolta em brocados, ostentando camafeus. Minas é saborosamente mágica.
Mineiro sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Fica uma dor forte, funda, farta e fértil, tão imponderável como o amor místico, onde o coração lateja embevecido por inefável paixão.
Ave, Minas! Batizada Gerais, és uma terra muito singular.
Texto extraído do discurso proferido por FREI BETO na solenidade de entrega do Prêmio Sucesso Mineiro, no Palácio das Artes em 20/12/95.
Como todo mineiro é um pouco filósofo, há um mistério sobre o qual venho há anos especulando: o que é ser mineiro?
Das reflexões e inflexões que extraí sobre a mineirice, muitas delas colhidas em filosóficas inscrições de rótulos de cachaça e quinquilharias de beira de estradas, eis as conclusões prévias e provisórias, sujeitas a chuvas e trovoadas, a que cheguei.
Ser mineiro é dormir no chão para não cair da cama; usar sapatos de borracha para não dar esmola a cego; sorrir sem mostrar os dentes; tomar café ralo e esconder dinheiro grosso. É desconfiar até dos próprios pensamentos e não dar adeus para evitar abrir a mão. Mineiro pede emprestado para disfarçar a fartura. Se é rico, compra carro do ano e manda pôr meia sola em sapato usado. Mineiro vive pobre para morrer rico.
Mineiro não é contra nem a favor, antes, pelo contrário.
Mineiro fala de desgraça, doença, morte e vive como quem se julga eterno. Chega na estação antes de colocarem os trilhos, para não perder o trem.
Relógio de mineiro é enfeite. Pontual para chegar, o mineiro nunca tem hora para sair. A diferença entre o suíço e o mineiro é que o primeiro chega na hora. O mineiro chega antes.
O bom mineiro não laça boi com embira; não dá rasteira em pé de vento; não pisa no escuro; não anda molhado; não estica conversa com estranhos; só acredita em fumaça quando vê o fogo; pede no açougue lombinho francês; só arrisca quando tem certeza e não troca um pássaro na mão por dois voando.
Mineiro fala de política como se só ele entendesse do assunto; finge que acredita nas autoridades e conspira contra o governo; faz oposição sem granjear inimigos; gera filhos para virar compadre de político; foge da luz do sol por desconfiar da própria sombra vive entre montanhas e sonha com o mar; viaja o mundo para comer, do outro lado do planeta, um tutu de feijão com couve picada.
Ser mineiro é venerar o passado como relíquia e falar do futuro como utopia; curtir saudades na aguardente e paixão em serenatas; dormir com um olho fechado e outro aberto; acender vela à santa e, por via das dúvidas, não conjurar o diabo. Mineiro acende a Deus a vela comprada do diabo.
Ser mineiro é fazer a pergunta já sabendo a resposta. É ter orgulho de ser humilde. É bancar a raposa e ainda tomar conta do galinheiro. Mineiro fica em cima do muro, não por imparcialidade, mas para poder ver melhor os dois lados. Cabeça-dura, o mineiro tem o coração mole. Acredita mais no fascínio da simpatia que no poder das idéias.
Mineiro é isso sô! Come as sílabas para não morrer pela boca. fala manso para quebrar as resistências do interlocutor. Sonega letras para economizar palavras. De vossa mercê, passa para vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, num demora muito, usará só o acento circunflexo! Mineiro fala um dialeto que só outro mineiro entende, como aquele sujeito que à beira do fogão de lenha, ensinava o outro a fazer café. Fervida a água, o aprendiz indagou: "Pó pô pó?" E o outro respondeu: "Pó pô, pô".
Ser mineiro é saber criar bois, filhos e versos. è ir ao teatro, não para ver, mas para ser visto. É frequentar igreja para fingir piedade; rir antes de contar a piada e chorar da desgraça alheia.
Mineiro adora sala de visitas encerada e trancada, na esperança de retorno do rei. Avarento, não lê o jornal de uma só vez para não gastar as letras, e ainda guarda para o dia seguinte para poder ter notícias. Mineiro não lê, passa os olhos. Não fala ao telefone, dá recado.
Praia de mineiro é barzinho, restaurante, balcão de armazém e cerca de curral. Ali a língua rola solta na conversa mole, como se o tempo fosse eterno. Certo mesmo é que o momento é terno.
Ser mineiro é ajoelhar na igreja para ver melhor as pernas da viúva, frequentar batizado para pedir votos e ir a casamentos para exibir roupa nova.
Mineiro vai a enterro para conferir quem continua vivo. Nunca sabe o que dizer aos parentes do falecido, mas fica horas na fila de cumprimentos para marcar presença. Leva lenço no bolso para caso de ter que enxugar as lágrimas da família. Não manda flores porque desconfia que a flora não cumpre o trato e embolsa a grana.
Ser mineiro é esbanjar tolerância para mendigar afeto. É proferir definições sem se definir. É contar casos sem falar de si próprio. Mineiro é feito pedra preciosa: visto sem atenção não revela o valor que tem.
Mineiro é capaz de falar horas seguidas sem dizer nada. Esconde o jogo para ganhar a partida. Cumprimenta com a mão mole para escapar do aperto e acredita que a fruta do vizinho é sempre mais gostosa.
Mineiro age com a esperteza das serpentes, mas se veste com a simplicidade das pombas e encobre suas contradições com o manto do fictício da cordialidade.
Mineiro é como angu, só fica no ponto quando se mexe com ele.
Ser mineiro é fazer cara feia e rir com o coração; andar com guarda-chuva para disfarçar a bengala; fumar cigarro de palha para espantar os mosquitos; mascar fumo para amaciar a dentadura.
Mineiro sabe quantas pernas tem a cobra; escova os dentes do alho; teme rasteira de pé de mesa; toma café ralo para enxergar o fundo da caneca e por via das dúvidas, põe água e alpiste para o cuco.
Ser mineiro é fingir que não sabe o que bem se conhece. Mineiro que não reza não se preza. Religioso, na crendice do mineiro há lugar para todos: o Cujo e a mula sem cabeça; assombrações e fantasmas; duendes e extra-terrestres. Pacífico, mineiro dá um boi para não entrar na briga e a boiada para continuar de fora. mas, se pisam no calo do mineiro, ele conjura, te esconjura, jurado e juramentado no sangue de Tiradentes.
"Minas Gerais é muitas", como disse Guimarães Rosa. É fogão de lenha e comida preparada na panela de pedra sabão; é turmalina e esmeralda; e tropa de burro e rios indolentes chorando a caminho do mar; é sino de igreja e tropeiros mourejando gado sob a tarde incendiada pelo hálito da noite. Minas é mantiqueira e serrado, é aleijadinho e Amílcar de Castro, é Drumond e Milton Nascimento, é pão de queijo e broa de fubá. Minas é uma mulher de ancas firmes e seios fartos, sensual nas curvas, dócil no trato, barroca no estilo e envolta em brocados, ostentando camafeus. Minas é saborosamente mágica.
Mineiro sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Fica uma dor forte, funda, farta e fértil, tão imponderável como o amor místico, onde o coração lateja embevecido por inefável paixão.
Ave, Minas! Batizada Gerais, és uma terra muito singular.
Texto extraído do discurso proferido por FREI BETO na solenidade de entrega do Prêmio Sucesso Mineiro, no Palácio das Artes em 20/12/95.