quinta-feira, 13 de março de 2014

Minas Enigma - Fernando Sabino

Foto: UNIVERSO - BIRIBIRI - DIAMANTINA - MINAS GERAIS - BRASIL

Se sou mineiro? Bem, é conforme, dona. (Sei lá por que ela está
perguntando?) Sou de Belzonte, uai.

Tudo é conforme. Basta nascer em Minas para ser mineiro? Que diabo é
ser mineiro, afinal? Inglês misturado com oriental? É fumar cigarro de
palha, como o poeta Emílio, de Dores do Indaiá? Autran fuma cachimbo.
Tem até quem fume cigarro americano. (No bairro do Calafate havia uma
fábrica de "Camel".) Em suma: ser mineiro é esperar pela cor da
fumaça. É dormir no chão para não cair da cama. É plantar verde pra
colher maduro. É não meter a mão em cumbuca. Não dar passo maior que
as pernas. Não amarrar cachorro com lingüiça.

Porque mineiro não prega prego sem estopa. Mineiro não dá ponto sem
nó. Mineiro não perde trem.
Mas compra bonde.
Compra. E vende pra paulista.

Evém mineiro. Ele não olha: espia. Não presta atenção: vigia só. Não
conversa: confabula. Não combina: conspira. Não se vinga: espera. Faz
parte do decálogo, que alguém já elaborou. E não enlouquece: piora. Ou
declara, conforme manda a delicadeza. No mais, é confiar desconfiando.
Dois é bom, três é comício. Devagar que eu tenho pressa.

Apólogo mineiro: o boi velho e o boi jovem, no alto do morro — lá
embaixo uma porção de vacas pastando. O boizinho, incontido:
— Vamos descer correndo, correndo e pegar umas dez?
E o boizão, tranqüilamente:
— Não: vamos descer devagar, e pegar todas.
Mais vale um pássaro na mão. A Academia Mineira, há tempos, pagava um
jeton ridículo: duzentos cruzeiros — antigos, é lógico. Um dos
imortais, indignado, discursava o seu protesto:
— Precisamos dar um jeito nisso! Duzentos cruzeiros é uma vergonha! Ou
quinhentos cruzeiros, ou nada!
Ao que um colega prudentemente aparteou:
— Pera lá: ou quinhentos cruzeiros, ou duzentos mesmo.

Quem nasce em Três Corações é tricordiano — haja vista Pelé. Quem
nasce em Barbacena tem de escolher a Maternidade: ou é do Zezinho ou
do Bias. E a Manchester Mineira, terra do Murilo Mendes? O poeta Nava
foi-se embora: "parabéns a Pedro Nava, parabéns a Juiz de Fora".
Itabira, calçada de ferro: não aceitou chamar-se Presidente Vargas,
continuou digna do itabirano Carlos. E Ouro Preto continua digna de
ser vista: ali é a casa do Rodrigo; Renato de Lima, ex-delegado e
pianista amador, pintando junto à Casa dos Contos. Afonso é de
Paracatu. Em Sabará nasceram Lúcia e Aníbal, além de outros ilustres
Machados. Alphonsus, o solitário de Mariana. Os profetas de Congonhas.
A cidade de Tiradentes — o que não tinha barbas. O Aleijadinho não
tinha mãos. São João del Rei, onde nasceu Otto, o que morrerá batendo
papo. Solidário só no câncer? Absolutamente, dona: nas virtudes
também, uai. Haja vista a Tradicional Família Mineira, que Deus a
tenha. As estações de águas: lembrança de São Lourenço, escrito num
copinho. E Lambari, terra de Henriqueta! Monte Santo tem a rua mais
iluminada do mundo. E uma ambulância com sirene, que seu filho
Castejon arranjou. Itaúna fica num quarto andar do Leblon, no
apartamento de Marco Aurélio, o bom. Jeremias, outro bom, mineiro como
Ziraldo. Os bonecos de Borjalo só ganharam boca depois que começaram a
falar. Mineiro por todo lado! O poeta Pellegrino, como psiquiatra, tem
garantida uma numerosa clientela. Amílcar modela Minas em arame. Paulo
encontrou Minas depois que saiu de lá. João Leite levou-a para São
Paulo, Alphonsus para Brasília, Guilhermino para o Sul. João Camilo
ficou. Etiene voltou. Paulo Lima voltou. Iglezias voltou. Jaques
voltou.Figueiró continua, Rubião recomeçou.

Um Estado de nariz imenso, um estado de espírito: um jeito de ser.
Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — prudência e capitalização.
O guarda-chuva da proteção financeira, não como lema do Banco do
Magalhães mais o Zé Luís, e sim como regra de conduta:
— Meu filho, ouça bem o seu pai: se sair à rua, leve o guarda-chuva,
mas não leve dinheiro. Se levar, não entre em lugar nenhum. Se entrar,
não faça despesas. Se fizer, não puxe a carteira. Se puxar, não pague.
Se pagar, pague somente a sua.

Mas todos os princípios se desmoronam diante de um lombo de porco com
rodelas de limão, tutu de feijão com torresmos, lingüiça frita com
farofa. De sobremesa, goiabada cascão com queijo palmira. Depois,
cafezinho requentado com requeijão. Aceita um pão de queijo? biscoito
polvilho? brevidade? ou quem sabe uma broinha de fubá? Não, dona,
obrigado. As quitandas me apertencem, mas prefiro bolinho de januária,
e pronto: estou sastifeito.

É a hora e a vez de Guimarães Rosa sorrir e dizer pra cumpadre meu
Quelemén: perigoso nada, mira e veja, nas Gerais, essas coisas...
Falar de Minas, trem danado, sô. É falar no mundo misterioso de Lúcio
Cardoso, Cornélio Pena ou Rosário Fusco, no mundo irônico, esquivo ou
pitoresco de Cyro dos Anjos, Oswaldo Alves, Mário Palmério, seus
romancistas. E num mundo de gente, seus personagens, que vão de
Antônio Carlos a Milton Campos, de Bernardes a Juscelino — vasto
mundo! ah, se eu me chamasse Raimundo. Dentro de mim uma corrente de
nomes e evocações antigas, fluindo como o Rio das Velhas no seu leito
de pedras, entre cidades imemoriais. Leopoldina, doce de manga, terra
de meus pais... Prefiro estancá-las no tempo, a exaurir-me em
impressões arrancadas aos pedaços, e que aos poucos descobririam o que
resta de precioso em mim — o mistério da minha terra, desafiando-me
como a esfinge com o seu enigma: decifra-me , ou devoro-te.

Prefiro ser devorado.

Dica da prima Luz e Mar, de Juiz de Fora

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