segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Final de cada etapa - Fernando Pessoa

DIAMANTINA - MINAS GERAIS

Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final...
Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver.
Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram.
Foi despedida do trabalho? Terminou uma relação? Deixou a casa dos pais? Partiu para viver em outro país? A amizade tão longamente cultivada desapareceu sem explicações?
Você pode passar muito tempo se perguntando por que isso aconteceu....

Pode dizer para si mesmo que não dará mais um passo enquanto não entender as razões que levaram certas coisas, que eram tão importantes e sólidas em sua vida, serem subitamente transformadas em pó. Mas tal atitude será um desgaste imenso para todos: seus pais, seus amigos, seus filhos, seus irmãos, todos estarão encerrando capítulos, virando a folha, seguindo adiante, e todos sofrerão ao ver que você está parado.
Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, nem mesmo quando tentamos entender as coisas que acontecem conosco.

O que passou não voltará: não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar.
As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora...
Por isso é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem.

Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração... e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar.
Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se.
Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos.

Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu gênio, que entendam seu amor. Pare de ligar sua televisão emocional e assistir sempre ao mesmo programa, que mostra como você sofreu com determinada perda: isso o estará apenas envenenando, e nada mais.
Não há nada mais perigoso que rompimentos amorosos que não são aceitos, promessas de emprego que não têm data marcada para começar, decisões que sempre são adiadas em nome do "momento ideal".

Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará!
Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo, sem aquela pessoa - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade.
Pode parecer óbvio, pode mesmo ser difícil, mas é muito importante.

Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida.
Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é. Torna-te uma pessoa melhor e assegura-te de que sabes bem quem és tu próprio, antes de conheceres alguém e de esperares que ele veja quem tu és..
E lembra-te:
Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão

Postado por Luiz Germano Alvarenga, no Blog do Alvarenga: http://legalvarenga.blogspot.com

Foto: UNIVERSO

Cozinha - Rubem Alves

Fogão a lenha - Casa de Juscelino Kubitschek de Oliveira - Diamantina - MG

Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.
"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...

Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio. A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.
As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.

O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.

Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.

As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.
Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.

Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.

Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma... A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)...
Correio Popular, Caderno C, (19/03/2000.)
Texto enviado pela Leda Lucas - Não deixe de ler o outro texto "A Cozinha" de Rubem Alves, postado em seguida no blog.
Foto: UNIVERSO

A Cozinha - Rubem Alves

Fogão a lenha - Biribiri - Diamantina - Minas Gerais

A cozinha era o melhor lugar. De manhã, depois do café com leite pão e manteiga, cada um ia para um lugar diferente. Era a hora da separação. O que era muito bom. À noite todos nos encontrávamos de novo na cozinha, o que era melhor ainda.

O fogão de lenha aceso era um altar. A gente adorava, sem saber. O fogo. A lenha queimava, perfumando o ar com o cheiro das resinas que a madeira chorava através de suas gretas. E de repente voavam fagulhas estalando, pequenos fogos de artifício. O fogo avermelhava os rostos. A prosa era sempre sobre coisas de antigamente que todos já conheciam. “Pai, conta daquela vez que, pra visitar a mamãe, você atravessou a enchente do rio num tacho do engenho de cana puxado por uma corda...” A conversa era só uma desculpa para estar juntos. A conversa era uma continuação das mãos. As palavras tinham carne. Na sala de visitas, lugar de cadeiras em ângulo reto, o silêncio criava incômodo. Não podia ser. O vazio era o nada. Silêncio seria falta de educação com as visitas. Mas na cozinha, diante do fogo, o silêncio era bem-vindo. Só contemplar o fogo já bastava. Era um silêncio carnudo, cheio de ser, tranquilo e feliz. O fogo incendiava a imaginação. Um espaço com um fogo aceso é um espaço aconchegante. As sombras não param. Movem-se ao sabor da dança das chamas. O fogo tranqüiliza a alma, espanta os medos. Faz lugar para os pensamentos vagabundos que não querem nada.

A chapa quente do fogão era lugar para uma cafeteira de ágata. Quando não o café, um chá de folha de laranjeira. Minha amiga Maria Alice, nascida em Mossâmedes, Goiás, viveu a cozinha como eu vivi. Contou-me que quando era mais jovem propunha um negócio a Deus: ela trocaria um ano de sua vida agora por uma única noite na cozinha de sua casa. Toda noite era igual. Ela conta: “A mãe dizia: ‘Vou é lá fora apanhar umas folhas de laranjeira prá fazer um chá pra nós...’ O pai advertia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada. Está com a cara quente do calor do fogo e vai sair na friagem? Vai acabar de boca torta...’ Ela nunca seguiu a advertência do marido e nunca ficou de boca torta.

Sobre o fogo, uma panela de ferro coberta com uma tampa de lata de óleo de 18 litros, com brasas em cima. Dentro da panela, um “bolo de panela”. É preciso dizer que é “bolo de panela” para diferenciar dos outros, que são de forno. Bolo de panela é bolo de pobre que não tem forno. As brasas na lata são para assar o topo do bolo. De fubá, com pedacinhos de queijo Minas. A tecnologia não era perfeita. Um momento de distração e as brasas queimavam a crosta. Mas esses pedaços queimados eram mais gostosos. A manteiga escorria no bolo quente. A Tofa cuidava do fogo, cuidava do café, cuidava do bolo de panela. Às vezes, ao invés de bolo de panela era pipoca. Podia ser que nos assentássemos à volta da mesa nos bancos compridos e se usasse o tempo para escolher feijão ou debulhar milho de pipoca para o dia seguinte. Nas noites de chuva, os pingos das goteiras tocavam música nas panelas espalhadas pelo chão. Meu pai gostava da música das goteiras. Ele dizia que elas o faziam dormir.

Nas noites de julho, muito frio, a gente se assentava à volta de um tacho de cobre cheio de brasas e punha os pés nos pauzinhos dos tamboretes, pra quentar fogo. Apagava-se a luz e os rostos apareciam vermelhos sobre um fundo escuro. Os pintores flamengos gostavam desse jogo de vermelho e negro.

De noite, a cozinha era um lugar macio, de ficar quieto, fazendo nada, só gozando... Gozando a dança vermelha das chamas, o cheiro das resinas, o barulhinho do fogo crepitando, o gosto bom do café com bolo. Era uma festa para os sentidos tranquilos. Estávamos livres da compulsão por fazer. Parafraseando Bachelard: “Quer ficar tranquilo? Contemple calmamente a chama de um fogão de lenha que faz o seu trabalho de luz e calor...”

De dia, a cozinha era outra coisa. Virava oficina de alquimista, lugar onde se processavam grandes transformações na matéria. O fogo fazia o duro ficar mole: a mandioca, a batata, o arroz, a carne. Fazia o mole ficar duro: o ovo cozido, o pé de moleque, rapadura com amendoim. A rapadura mesma era um líquido que o fogo transformara em sólido. O fogo também fazia ferver a meleca das goiabas partidas até transformá-las em pastas endurecidas que se guardavam em caixas. O fogo fazia o nojento virar sabão: aquelas muxibas e sebos de carne de vaca, ajuntados debaixo do fogão, misturadas com decoada, tudo derretido junto num tacho de cobre vermelho, virava sabão preto que, depois de pronto, era amassado em bolas do tamanho de duas conchas de mão e amarrados artisticamente com palha de milho. Decoada faz-se assim: as cinzas do fogão, depois de purificadas de pedacinhos de carvão por meio de uma peneira, eram colocadas dentro de uma lata de óleo grande, não sem antes fazer três furinhos no fundo. A seguir, a cinza era pilada até ficar dura como pedra. Colocava-se então a lata sobre três tijolos, debaixo dos furos um pires, e derramava-se água na cinza, cada dia só um pouquinho. A água era filtrada através da cinza e saía no pires como um líquido da cor de café. Esse líquido era a decoada que era misturada à nojeira das muxibas e sebos para produzir o delicado sabão preto, muito bom para a pele. Me disseram que a tal decoada continha potássio. Mas ninguém sabia o que era potássio! Vejam! Eles sabiam sem saber, mais do que nós! Conheciam o poder daquele líquido sem nome científico. Enquanto que nós conhecemos o nome científico mas nada sabemos sobre o seu poder. Eu descobri, numa aldeia histórica nos Estados Unidos, que era assim que os Pilgrim Fathers faziam sabão. Do jeito como a gente fazia, lá em Minas. Fazia o sólido virar gás: a lenha, as cascas de laranja secas, penduradas num varal de arame sobre o fogão: pegavam fogo com fúria!

Eu me metia na cozinha não por interesses culinários mas por interesses técnicos. O fogo me ajudava a fazer brinquedos. Para colar o papel de seda dos papagaios eu fazia grude, mistura de polvilho com água numa latinha vazia de massa de tomate sobre a chapa, mexendo sempre para não empelotar. Custou-me muitos experimentos para aprender a técnica de fazer grude sem pelotas. Para fazer furos numa tábua, sem arco de pua, o jeito era aquecer um espeto redondo até ficar em brasa. Aí enfiava-se o espeto incandescente no lugar do furo. A madeira pretejava, soltava fumaça, o espeto entrava até varar. Peso para linha de pescar se fazia derretendo-se alguns tubos de dentifrício ( esse era o nome da pasta dental...) que eram de chumbo. Como já disse, o fogo tem o poder de transformar o duro em líquido. Aí derramava-se o chumbo derretido num buraquinho cônico feito num canto do rabo do fogão. Antes que o chumbo endurecesse eu enfiava nele uma varetinha fina de uma vassoura de piaçava. Era através do buraco que a varetinha deixava que o fio de pesca iria passar. Fuçador, quebrei a caneta tinteiro do meu irmão Ismael. Tentei colar as partes com o poder do fogo. Colou, mas ficou torta.

Depois de velho, ao me lembrar das minhas experiências científicas com a cozinha, pensei que seria possível montar um programa de química a partir da culinária. Pois a química não se iniciou com a alquimia, que pretendia descobrir os segredos das transformações da matéria? E haverá lugar onde tais transformações são mais visíveis que a cozinha? Descobri, então, que um francês já havia feito isso. Seu nome é Hervé This-Benckhard. Eis o que ele escreveu no seu livro Les secrets de la casserole: “Cozinhar e fazer experiências químicas partem do mesmo princípio; misturar produtos diferentes e ver qual o resultado. As substâncias mudam de cor, de aroma, de sabor, de consistência. São duas atividades concretas, enriquecedoras e, ao contrário do que se imagina, nada difíceis” ( “O Estado de São Paulo,1994, 14 de maio, A-18).Mas parece que os professores de química não se entusiasmaram. Acho que eles nunca tiveram as experiências de alquimista que eu tive...
(Correio Popular, Caderno C, 31/07/2005)

Esse texto delicioso de Rubem Alves, que é uma viagem na memória, foi enviado pela Leda Lucas do blog : www.sedafurta-cor.blogspot.com . Faça uma visita ao blog da Leda e veja como é gostoso navegar pelas suas páginas.

Foto: UNIVERSO

Sentimental - Carlos Drummond de Andrade

Ponho-me a escrever teu nome

com letras de macarrão.

No prato, a sopa esfria, cheia de escamas

e debruçados na mesa todos contemplam

esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,

uma letra somente para acabar teu nome!

Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...

E há em todas as consciências um cartaz amarelo:

"Neste país é proibido sonhar."

Carlos Drummond de Andrade. In: Reunião: 10 Livros de Poesia. 10ª ed. Rio de Janeiro,

José Olympio Editores, 1980, pág. 12

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.

Ante a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se posentou em 1962. faleceu no Rio de janeiro em 17 de agosto de 1987, aos 84 anos, doze dias após a morte de sua única filha a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade.

Enviado pela nova e já querida amiga Leda Lucas, que tem um blog de excelente beleza e conteúdo. Recomendo a todos uma visita ao blog da Leda. É só clicar no link: www.sedafurta-cor.blogspot.com

Pesquisa e Fotos: Internet - Memória Viva