domingo, 19 de outubro de 2014

Rosário - Vinicius de Moraes








Rio de Janeiro , 1946

E eu que era um menino puro 
Não fui perder minha infância 
No mangue daquela carne! 
Dizia que era morena 
Sabendo que era mulata 
Dizia que era donzela 
Nem isso não era ela 
Era uma moça que dava. 
Deixava... mesmo no mar 
Onde se fazia em água 
Onde de um peixe que era 
Em mil se multiplicava 
Onde suas mãos de alga 
Sobre meu corpo boiavam 
Trazendo à tona águas-vivas 
Onde antes não tinha nada. 
Quanto meus olhos não viram 
No céu da areia da praia 
Duas estrelas escuras 
Brilhando entre aquelas duas 
Nebulosas desmanchadas 
E não beberam meus beijos 
Aqueles olhos noturnos 
Luzindo de luz parada 
Na imensa noite da ilha! 
Era minha namorada 
Primeiro nome de amada 
Primeiro chamar de filha... 
Grande filha de uma vaca! 
Como não me seduzia 
Como não me alucinava 
Como deixava, fingindo 
Fingindo que não deixava! 
Aquela noite entre todas 
Que cica os cajus! travavam! 
Como era quieto o sossego 
Cheirando a jasmim-do-cabo! 
Lembro que nem se mexia 
O luar esverdeado 
Lembro que longe, nos Ionges 
Um gramofone tocava 
Lembro dos seus anos vinte 
Junto aos meus quinze deitados 
Sob a luz verde da lua. 
Ergueu a saia de um gesto 
Por sobre a perna dobrada 
Mordendo a carne da mão 
Me olhando sem dizer nada 
Enquanto jazente eu via 
Como uma anêmona na água 
A coisa que se movia 
Ao vento que a farfalhava. 
Toquei-lhe a dura pevide 
Entre o pêlo que a guardava 
Beijando-lhe a coxa fria 
Com gosto de cana brava. 
Senti à pressão do dedo 
Desfazer-se desmanchada 
Como um dedal de segredo 
A pequenina castanha 
Gulosa de ser tocada. 
Era uma dança morena 
Era uma dança mulata 
Era o cheiro de amarugem 
Era a lua cor de prata 
Mas foi só naquela noite! 
Passava dando risada 
Carregando os peitos loucos 
Quem sabe para quem, quem sabe? 
Mas como me seduzia 
A negra visão escrava 
Daquele feixe de águas 
Que sabia ela guardava 
No fundo das coxas frias! 
Mas como me desbragava 
Na areia mole e macia! 
A areia me recebia 
E eu baixinho me entregava 
Com medo que Deus ouvisse 
Os gemidos que não dava! 
Os gemidos que não dava... 
Por amor do que ela dava 
Aos outros de mais idade 
Que a carregaram da ilha 
Para as ruas da cidade 
Meu grande sonho da infância 

Angústia da mocidade.
FOTO: Enviada via FB, pelo amigo ERIC COHEN